Voltar ao teatro após tanto tempo devido à pandemia tem um gosto diferente. Mesmo que tenhamos encontrado meios tecnológicos como as lives para assistir a encenações, nada substitui esse momento do encontro presencial. No último final de semana, tive a sorte de voltar ao teatro e assistir à peça O Inverno do Nosso Descontentamento – Nosso Ricardo III no Theatro São Pedro.
Shakespeare é um mestre em desnudar os meandros do poder, da tragédia e da loucura. Temas recorrentes em obras como Rei Lear e Macbeth, por exemplo. Em Ricardo III, não é diferente: a peça apresenta o conflito e a luta pelo trono da Inglaterra em 1455. O texto oferece uma visão crítica e sarcástica da imoralidade, da ambição e da manutenção do poder a qualquer custo. Ricardo III é um vilão sem remorsos, sem culpa, capaz de eliminar seus adversários com frieza. "Filho do ressentimento", o personagem de Shakespeare é carregado de ódio e maldade.
A adaptação a que assisti não deixa de representar toda a complexidade e a grandiosidade da obra shakespeariana ao mesmo tempo em que o dessacraliza para atualizá-la no tempo. Produzida pela Cia. Teatro ao Quadrado e dirigida por Luciano Alabarse, a peça traz atuações magistrais e irretocáveis de Marcelo Ádams e Margarida Peixoto. O texto adaptado se atualiza e remonta o terror dos tempos sombrios do nazismo e da ditadura. Além disso, a figura atormentada de Ricardo III revela em suas falas as dinâmicas nefastas do poder e de governantes autoritários. Assim, logo de início já identificamos ecos da postura do governo Bolsonaro.
Aliás, as semelhanças com o presidente da República não param apenas nas características de um tirano, mas em vários momentos Ricardo III incorpora o discurso do próprio Bolsonaro de maneira caricata. Sem baratear ou simplificar Shakespeare, a peça faz alusões aos desmandos autoritários de Bolsonaro, assim como seus discursos machistas, racistas e genocidas.
A costura entre política e estética se desenvolve de forma contundente e assertiva durante a apresentação. A presença de um coronel no palco mostrando a relação promíscua entre militarismo e poder e os elementos do cenário que ora lembram um universo infantil, ora um ambiente infernal, aliados a uma trilha sonora surpreendente e ao jogo de luzes funestas, inserem o espectador nos labirintos da mente perturbada de um tirano. O Inverno do Nosso Descontentamento – Nosso Ricardo III cumpre com excelência um dos propósitos da arte: resistir e indignar-se contra tiranos e genocidas.