Em minha juventude, quando recém havia descoberto o gosto pela leitura e lia sobre a vida dos escritores, eu me perguntava que espécie de frenesi era aquele. Que tipo de maluquice era aquela que levava escritores e escritoras a gastarem suas vidas escrevendo histórias? Que tipo de doença psíquica era aquela que os acometia e que os levava para um caminho sem volta ao mundo da ficção, dos enredos e dos personagens?
Quando eu fechava um livro, pensava: como era possível alguém que escreva romances, contos e poemas continuar a viver sua vida cotidiana? Como era possível ser sequestrado pela literatura, conviver por meses ou anos com os personagens e depois regressar à vida burocrática, comezinha e tributária? Mais do que isso, como era possível continuar vivendo depois de saber tantas coisas e descobrir o pior e o melhor dos seres humanos?
Lygia Fagundes Telles nos deixou há poucos dias. Ela tinha 98 anos. A maioria deles dedicados à literatura. Ainda não estou certo, mas acho que escolher os livros como um modo de viver é uma escolha grave. Talvez Lygia soubesse disso. Lembro a primeira vez em que li os contos do livro Antes do Baile Verde. Li em voz alta para mim alguns trechos de As Formigas e Natal na Barca. Rapidamente, fui absorvido pela atmosfera tensa e inesperada a que o leitor é levado. Ecos de Edgar Allan Poe estavam lá. Já quando professor, certa vez levei para a aula o romance As Meninas e pude ver ali, na prática, aquelas personagens fortes suscitando discussões profundas sobre política, sobre a condição das mulheres, sobre a literatura e sobre a existência.
Novamente me pergunto, Lygia, como é possível seguir anos a fio, em meio aos livros, num país que historicamente rejeita suas escritoras, num país de poucos leitores em que livros são tratados como objetos de luxo, num país em que ter uma biblioteca em casa ainda causa estranhamento.
No dia de sua morte não escrevi nada a respeito. Fiz minha homenagem particular. Levantei, fui até a estante, busquei o livro Antes do Baile Verde, abri no conto Venha Ver o Pôr do Sol e o li em voz alta. Uma escritora como Lygia não morre sozinha, porque embora a morte seja o evento mais solitário de nossa caminhada, nós, seus leitores, os livros que ela leu, os livros que Lygia escreveu, também estavam lá fazendo companhia a ela naquele momento. E talvez essa seja a função máxima da literatura: nos mostrar que não estamos sós. Obrigado, Lygia.