O torniquete aplicado pela Polícia Federal ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) está cada vez mais apertado. Nunca antes houve uma investida policial tão forte contra o círculo de amigos e assessores mais próximo ao ex-mandatário do país. A operação desencadeada nesta sexta-feira (11) envolve buscas ao principal advogado do ex-presidente, Frederick Wassef, ao ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel do Exército Mauro Barbosa Cid (preso há três meses por conta de outra investigação) e ao pai desse militar, general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid.
E agora o alvo não é ideológico, como a possível conspiração contra o resultado da eleição ou para desacreditar a vacina contra a covid-19 - situações com as quais grande parte da base política bolsonarista concorda. A ação da PF, desta vez, diz respeito a crimes comuns, que atentam contra o Código Penal: desvio de dinheiro e lavagem de bens obtidos irregularmente.
Desvio, porque os dois militares de sobrenome Cid (pai e filho) teriam articulado a venda de bens públicos: presentes recebidos pelo então presidente Bolsonaro e que deveriam ser incorporados ao acervo do Palácio do Planalto, mas jamais comercializados. Lavagem, porque após ser descoberta a negociata, tentaram dissimulá-la, segundo a PF. Já Wasseff, acredite, teria ajudado a recomprar os objetos valiosos, assim que o Tribunal de Contas da União (TCU) mandou devolver os bens ganhos.
Não por acaso a operação da PF se chama Lucas 12:2. O nome homenageia um versículo bíblico, que fala "Não há nada escondido que não venha a ser descoberto, ou oculto que não venha a ser conhecido".
Tivemos acesso à decisão que ampara a operação da PF, escrita pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Ela elenca três supostas ações de dissimulação de venda de presentes recebidos por Bolsonaro no último ano de governo, 2022:
1 - Barco e palmeira folheados a ouro: a PF diz que ocorreu desvio de esculturas (um barco e uma palmeira, folheados a ouro). São presentes recebidos em 16 de novembro de 2021 por Jair Bolsonaro, no Encerramento do Seminário Empresarial da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira na cidade de Manama, no Reino do Bahrein. Pois no apagar das luzes do governo, no último dia útil (30 de dezembro de 2022), Bolsonaro decidiu fazer um tour pelos Estados Unidos. Desembarcou na Flórida, em companhia de seu ajudante, tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid. Esse militar levava numa mala o barco e a palmeira dados pelos árabes, conforme mensagens telefônicas dele, interceptadas pela PF.
O tenente-coronel estava em Orlando e decidiu despachar a mala para a residência mantida em Miami pelo pai dele, o general Mauro Cesar Lourena Cid (ex-colega de turma de Bolsonaro). Por mensagem, Cid (filho) pede ajuda a Marcela Magalhães, que fora auxiliar de Michelle Bolsonaro e estava indicada para ocupar cargo no consulado brasileiro em Orlando.
A mala é entregue no endereço do pai, após combinação de horário detalhada nas mensagens. O ajudante de ordens de Bolsonaro recomenda que seja feita tentativa de vendas numa joalheria, situada em North Miami Beach.
O general Cid pergunta então ao filho:
— Eles sabem que eu irei levar para avaliação? (em referência a joalheria).
O tenente-coronel Cid responde:
— Sabem, sim. Tem de tirar fotos.
O pai do tenente-coronel Cid fez então fotos dos objetos valiosos, para divulgar para venda. Mas foi descuidado e deixou indícios. Como mostra o inquérito da PF, no reflexo da foto de uma caixa de joias aparece o rosto do general Cid, quase numa selfie involuntária.
A venda fracassou, segundo a investigação. Não por dúvidas morais dos envolvidos, mas porque o valor esperado com as joias não foi obtido. Conforme mensagem de Mauro Cid a um interlocutor, interceptada pela PF:
"Aquelas duas peças que eu trouxe do Brasil, aquele navio e aquela árvore, não são de ouro. Elas têm partes de ouro, mas não são todas de ouro. Então eu não estou conseguindo vender. Tem um cara aqui que pediu para dar uma olhada mais detalhada para ver o quanto pode ofertar. Eu preciso deixar a peça lá, pra ele poder dar o orçamento. Então eu vou fazer isso, vou deixar a peça com ele hoje".
A PF tentou rastrear o destino das duas esculturas. A última notícia é que foram trazidas pelo general Cid para o Brasil. Não há registro de que tenham sido incorporadas ao acervo público brasileiro, como deveriam.
2 - Kit de joias "Ouro Rosé" (caneta, anel, abotoaduras, um relógio e rosário árabe): conforme a PF, as joias, da grife Chopard, foram presenteadas em 2021 pela Arábia Saudita ao então ministro das Minas e Energia, Bento Albuquerque, e levadas por este aos EUA em dezembro de 2022, fim do governo Bolsonaro. Mauro Cid e o pai teriam tentado intermediar a venda desses objetos numa casa de leilões em Nova York. Estariam avaliadas em US$ 120 mil (cerca de R$ 600 mil). Um leilão foi tentado em março de 2023, mas houve compradores. Como a mídia começou a divulgar que Albuquerque tinha retirado do país os presentes recebidos, o TCU mandou que as joias fossem devolvidas. O tenente-coronel Mauro Cid trouxe de volta o acervo para o Brasil e o encaminhou à Caixa Econômica Federal.
3 - Kit de joias "Ouro Branco" (anel, abotoaduras, rosário islâmico e um relógio): desta vez o relógio é da marca Rolex e os presentes foram recebidos por Jair Bolsonaro em visita à Arábia Saudita, em 2019. O conjunto de objetos teria sido levado aos EUA em junho de 2022, quando o ex-presidente esteve na Flórida. O tenente-coronel Mauro Cid teria então viajado para o estado da Pensilvânia e vendido o Rolex e outro relógio, de marca Patek Philippe, obtendo por eles US$ 68 mil (em torno de R$ 330 mil). O dinheiro foi depositado na conta do pai dele, o general Mauro Lourena Cid. As demais joias teriam sido vendidas em Miami, em outra joalheria. Quando a mídia divulgou que as joias presenteadas tinham sido incorporadas ao acervo de Jair Bolsonaro, os Cid (pai e filho) articularam uma operação de resgate dos bens vendidos. Entra em cena, então, o advogado de Bolsonaro, Frederick Wassef, que viaja aos EUA e readquire o relógio Rolex, a preço superior ao vendido. O restante das joias foi recuperado pelo tenente-coronel Cid, em março de 2023. Todo o kit de presentes foi entregue à Caixa Econômica Federal em março.
Aqui é possível que o leitor fique em dúvida: se as joias foram devolvidas, qual o crime cometido pelos envolvidos? A questão é que, antes de serem devolvidas, algumas foram vendidas - e não poderiam, já que o presente era para o governo brasileiro, não para as pessoas. Pode ser usado, não comercializado. O outro ponto é que alguns dos objetos não foram mais localizados. Caberá aos advogados dos investigados arranjar explicações convincentes.