Existe um Brasil antes e outro depois do aumento da produtividade na produção agropecuária. Um era importador de alimentos. O outro é peça fundamental no abastecimento global. Para que essa transformação ocorresse em um espaço de apenas quatro décadas, a tecnologia teve papel fundamental. E o uso dessa ferramenta, hoje intrínseca à atividade, passou pelas mãos de um entusiasta: o mineiro Alysson Paolinelli, 86 anos, presidente-executivo da Associação Brasileira dos Produtores de Milho (Abramilho).
Foi com as premissas da ciência que o engenheiro agrônomo conduziu uma guinada, no final de década de 1970, quando assumiu o comando do Ministério da Agricultura. A expansão para o Centro-Oeste e o envio de 1,53 mil técnicos para formação no Exterior foram o início da chamada revolução da agricultura tropical. Foi a contribuição de Paolinelli nesse processo que o levou a ser agraciado com o prêmio World Food Prize, em 2006, e indicado como representante brasileiro para o Nobel da Paz no ano passado.
Hoje o Brasil é um dos grandes produtores mundiais, com papel crucial no fornecimento de alimentos para o mundo. Como era quando o senhor chegou ao Ministério da Agricultura, em 1974?
Tínhamos mais dificuldades com a agricultura no Brasil por uma razão bem lógica: quem dominava o mercado de produtos agrícolas eram as regiões temperadas. Eles tinham naquele tipo de clima bem definido vantagens. A primeira delas, o frio. Seis meses. Você tem metros e metros de neve acima do solo. O que significa? Vai crestar, queimar o solo pelo frio. O solo dormia, paralisava todos os fenômenos biológicos. Preservava tudo o que tinha durante seis meses. Em segundo lugar, as pragas e as doenças morriam. E, outra vantagem que considero, é que isso levou essa população a fazer pesquisa, melhorar suas condições de produção. Colocaram química, fisiologia, física na agricultura, cruzaram tudo e desenvolveram tecnologia para competir entre eles. E não nos davam nenhuma chance. Os países tropicais têm um clima completamente diferente. São 12 meses de insolação, luz, calor.
Era necessário, então, desenvolver um sistema diferente para as áreas com essas condições?
Procuramos tecnologia no mundo e não a encontramos, só alguma coisa em alguns produtos tropicais. Vimos que os dois climas são diferentes e têm de ter seu conhecimento próprio. E o clima tropical não tinha. Quando entrei no ministério, procurei como um louco saber o que havia de vantajoso para as regiões tropicais. Não encontrei nada. Ou seja, tinha de produzir aqui. Como? Pela ciência, pela tecnologia, pela inovação o cientista é capaz de fazer em todo o tipo de atividade. A evolução científica deu ao Brasil uma condição impressionante. No clima tropical conseguimos, primeiro, resolver o grande problema: não havia terras férteis. Fomos capazes de recompor terras que estavam degradadas há mais de 150 mil anos. O Cerrado, o campo. O Cerrado, por exemplo, deu certo demais.
Na prática, como foi a execução do processo de desenvolvimento da agricultura tropical?
Começamos lá na minha universidade (Escola Superior de Agricultura de Lavras), depois no governo de Minas Gerais. Quando comecei a trabalhar no ministério, tinha absoluta certeza de que o Cerrado ia dar certo. Além da facilidade de já ter sido criada a Embrapa, que eu reformulei, dei condições para que realmente pulasse na frente. Você tem de estar em dia com a ciência no mais alto grau em que ela tiver. Jogamos 1.530 técnicos nos melhores centros universitários agrícolas do mundo, inclusive alguns do Brasil. Essa foi nossa crença: se não tiver ciência, não faremos inovações, e, se não fizermos inovações, estamos fadados a ser eternos compradores de alimentos. Além disso, organizamos a extensão e assistência técnica.
Qual o papel do suporte técnico na evolução do setor?
Quando entrei no ministério, esse trabalho já estava em todos os Estados, evoluiu, progrediu. Tinha absoluta certeza de que tínhamos de fazer a mesma coisa no governo federal. Só que, na época, a assistência técnica estava em crise, tinha se indisposto com alguns governos. Achamos melhor trazer para o ministério e dar a responsabilidade de fazer toda a assistência técnica e a extensão rural. Botar uma energia elétrica, fazer automação, ter uma geladeira, um carro. Porque não era só um programa agrícola, era de infraestrutura e inclusive da família, que melhorou muito as condições de vida. E para garantir um dinheiro que não falhasse. Precisávamos acrescentar a produção, naquela época, em 3 milhões de hectares, que seriam do Cerrado. Fizemos o trabalho, até passamos, porque a pecuária começou a acreditar e entrar também. Com isso, cumprimos nossa missão de transferir tecnologia, garantir crédito para e ter governança para executar. O Brasil descobriu que tinha vantagens comparativas. Já se falava em segunda safra, até em terceira, com irrigação.
Você tem de estar em dia com a ciência no mais alto grau em que ela tiver. Se não tiver ciência, não faremos inovações e, se não fizermos inovações, estamos fadados a ser eternos compradores de alimentos.
ALYSSON PAOLINELLI
Presidente-executivo da Abramilho
Que vantagens eram essas descobertas a partir da revolução da agricultura tropical?
Com essa tecnologia tropical, apareceram três coisas que ninguém acreditava. Primeiro, que o Brasil pudesse ter produtos iguais ou melhor do que os deles. Segundo, que esses produtos podiam sair mais baratos. E a terceira coisa, que é lógica, é que todo mundo que tem produto para oferecer permanentemente domina o mercado. O Brasil descobriu que era capaz de dominar o mercado. E, a partir de 1980, entramos pra valer nesse mercado. Em 20 anos, já tínhamos uma grande área de mercado, produzíamos em quantidade enorme e, veja que beleza, barateando esses produtos. Conseguimos reduzir o preço dos alimentos em 50% para o mundo e em 70% para o Brasil. Ou seja, comemos o alimento mais barato do mundo e o mundo passou a comer um alimento que custava a metade do que estava custando antes. Essa foi a contribuição da agricultura tropical. Hoje, fico muito feliz que essa agricultura tropical continua competindo, está produzindo com maior capacidade de prevenção e de evitar o desgaste dos recursos naturais. Pelo contrário, estamos trabalhando mais do que a própria natureza em muitas áreas e ainda temos as condições de baratear o preço pela oferta brasileira.
Como o senhor avalia as críticas de outros países em relação às questões ambientais do Brasil? De que forma essa questão deve ser trabalhada?
Essas críticas vêm de duas origens, a primeira delas ideológica. Acho que o Brasil não pode nem deve perder tempo em querer combater a área ideológica. O problema é nosso, interno, quero ter a liberdade para fazer as coisas. Agora, o que vejo que acontece também é um outro tipo de chamamento, que vem muito em função de autoanálise. A Europa, os Estados Unidos, o Canadá, todos sabem, desmataram seus biomas fabulosos. Então, o que há de mais interessante nisso é que, hoje, você vai nos países produtores do hemisfério temperado e não vê nada do que recomendam para nós. As florestas são apenas florestas exploradas, os rios não têm proteção, não há propriedades com proteção local. Você não vê uma árvore andando em regiões e regiões. Na Europa, nos Estados Unidos e na própria Índia há áreas assim. Acho que temos de chamar a ciência, que conhece e não tem interesse em mentir, evolui e é capaz de nos ajudar a ter as condições para preservar esses recursos dentro do que o país precisa, não das críticas lá de fora. O Brasil também quer produtos de mais qualidade, mais naturais, nutritivos, menos tóxicos. Isso estamos cumprindo aqui. Conquistamos a agricultura de volume e agora estamos entrando, com velocidade, em uma agricultura de produtos mais nutritivos, e caminhando para garantir que nosso produto será cada dia mais próximo do natural. Se há uma região que pode fazer isso com toda a capacidade é a tropical, porque temos luz, calor, solo, água, animais e plantas o ano inteiro. O Brasil é o país mais rico do mundo em biologia. A Amazônia tem reserva biológica que dá para mudar a alimentação no mundo, a favor do que o homem quer, de fato. Isso acontecerá em países como o Brasil, que está na frente. Os grandes países estão vindo aqui, estão malucos de ver a evolução de nossas produções.
Atualmente, há dois sistemas de produção de alimentos: o convencional e o orgânico. O senhor considera que sejam antagônicos?
Sou muito favorável à agricultura orgânica e fico muito feliz quando vejo um produtor trabalhando em uma em boas condições. A crítica que sempre fiz é amenizar um pouco as regras. Por exemplo: o produto só é registrado como orgânico depois de passar por um sistema de fiscalização rigorosa. E as empresas que criam as regras apertam para que não se tenha uma concorrência tão fácil. Precisam ser um pouco mais amenas, porque o que nós queremos é que essa agricultura cresça, e com as regras que tem isso é muito difícil. A produtividade no campo é problemática. Não há nenhuma proibição para que não se faça uma adaptação nessa agricultura orgânica. Os países ricos a cada dia querem menos problemas. Querem procurar o produto o mais natural possível. E nós, no Brasil, estamos caminhando para isso. Os combates biológicos aqui estão dando mais certo. Lá fora, eles falavam que a crestação pelo frio era uma vantagem para eliminar inimigos. Eu falo que aqui não elimina os inimigos, mas também não elimina os inimigos do inimigos. Acho que essa população está criando um novo hábito alimentar no mundo.
Que é...
Entrar em produtos mais naturais. Proteínas mais nobres, frutas, legumes, tubérculos. O Brasil tem ainda um grande número de propriedades sem tecnologia, que não estão fazendo agricultura competitiva, não conseguem ir ao mercado, não têm renda, isso é que é o pior, são miseráveis e famintos. Esses proprietários estão louquinhos por uma oportunidade. Se a gente conseguir trabalhar bem, vamos conseguir levar a eles, porque eles têm uma vocação natural pela atividade agrícola e vão querer ficar, se tiverem renda. Hoje, fico sabendo que, muitas vezes, a agricultura está pagando mais do que na cidade. Parabéns ao agricultor, porque se está pagando é porque pode. Essa é uma posição que vai dar uma igualdade ao homem que mexe no campo com o homem que mexe na cidade. E, principalmente, com relação ao produto do homem da cidade que queira se alimentar melhor. O homem do campo saberá fazer isso.
Em 2021, o senhor foi indicado pelo Brasil ao Prêmio Nobel da Paz pelo trabalho relacionado à agricultura e à segurança alimentar, temas tão em evidência...
É difícil de falar de uma homenagem que recebo assim, espontaneamente. A Universidade de São Paulo (USP) deu a chancela, porque é o órgão de maior credibilidade científica que o Brasil tem. Mas o resto foi muito mais uma indicação partida dos meus amigos, inclusive do Roberto Rodrigues (ex-ministro da Agricultura), que considero um irmão. Mas cheguei à seguinte conclusão: primeiro, não é fácil, acho quase impossível que o Brasil, nessa guerra em que está, seja premiado com o primeiro Nobel. Segundo, não há como não ser reconhecido na revolução que teve no setor agrícola. E isso vale muito. Agora, se estiverem dispostos — até tentei na minha indicação fazer isso —, quem sabe agricultores brasileiros fossem efetivamente os laureados, porque merecem muito. Tenho certeza de que quem fez essa revolução não foram eu e meus companheiros, mas o produtor. Foi ele que enxergou a possibilidade, acreditou em uma juventude que entrava no governo, foi atrás e fez. E conquistou essa grande revolução.
Roberto Rodrigues afirma que onde há segurança alimentar há paz. O senhor concorda? E o que está faltando para que se torne uma realidade?
Estamos passando por outra crise de alimentos. A demanda está muito maior, e a produção não cresceu nesses últimos anos o que deveria ter crescido, especialmente no Brasil. Vi o esforço da ministra Tereza Cristina, de toda a equipe, que é muito boa, de seu sucessor (Marcos Montes). Fizeram o possível, mas há limites naturais para crescer. Ela teve problemas de recursos e na área ambiental. Teve de brigar, mostrar erros que existiam. Parece-me que as coisas estão caindo em um local mais adequado de julgamento nessa questão ecológica. O Brasil tem de mudar esse ranço de uma geração que chegou no governo e colocou regras que nem ela é capaz de cumprir. Acho que toda regra tem de, primeiramente, ser cumprida pelo governo. Estou certo de que o mundo precisará de suporte e de um aumento de produção. E o mundo está sabendo que, por tecnologia, infraestrutura — que estamos corrigindo —, capacidade fluvial natural e organização das nossas empresas, o Brasil será um grande exportador. Tem condições de fazer isso. O Brasil será imprescindível à segurança alimentar.
Qual será a próxima grande revolução tecnológica do campo?
Além da agricultura 4.0, há a biotecnologia. Aí veremos o que é ter vantagem comparativa. Porque não tenho dúvida de que a biotecnologia, aqui, funciona melhor do que em qualquer parte do mundo. E vai se enquadrar e se ajustar ao 4.0, porque depende de informações que o homem não é capaz de fazer e que a máquina fornece. Hoje, quando se conjuga uma plantadeira com um pulverizador e com a colheitadeira, os dados são cada dia mais precisos, localizados, com GPS, tudo, o que facilitará o trabalho biológico. É para isso mesmo, para tirar as diferenças, pequeniníssimas que sejam, e as doenças.
Estamos perto de mais uma edição da Expointer, feira que conecta o homem urbano com o rural. Como o campo pode se comunicar melhor com a cidade e vice-versa?
Esse é um grande problema que tivemos. O campo não soube comunicar. Não soube dizer “gente, produzimos para vocês e já estamos produzindo para os outros, lá fora”. Estamos ajudando a ter um equilíbrio econômico. Tiramos o Brasil de cinco crises. O setor agrícola respondeu: cresceu, exportou, gerou recursos. Manter esse rivalismo (campo versus cidade) eu acho muito ruim. Sempre me preocupei com isso. E acho que fui um dos culpados, porque estava em um governo que não gostava de ficar alardeando o que fazia. Depois, como profissional, também acho que não defendi como podia o produtor brasileiro, porque as condições aqui no Brasil foram deturpadas. Posso garantir: o que fez o Brasil não sofrer as crises pós-2000 foi a nossa Embrapa, com a tecnologia que vem crescendo até hoje e está dando ao produtor brasileiro a capacidade competitiva que a gente não esperava. Estamos batendo qualquer tipo de mercado em qualidade, em preferência, portanto, eu fico muito feliz em dizer que a Embrapa está vivendo, continuando a trabalhar. As nossas universidades... Estão reclamando, mas parece que no fim do ano vão receber um pouco mais de recursos.
O Brasil tem de mudar esse ranço de uma geração que chegou no governo e colocou regras que nem ela é capaz de cumprir.
ALYSSON PAOLINELLI
Presidente-executivo da Abramilho
No ano passado, no lançamento do Plano Safra, o senhor disse que acredita na juventude, que terá mais competência. O que leva a projetar isso?
A tecnologia da informação (TI) possibilita os meios para que possam não só fazer os melhores projetos, mas colocar as condições de execução de modo mais claro, fazer previsões que levam o próprio sistema a sugerir as correções necessárias. Isso tudo hoje é feito com mais dados, online, isso dá uma segurança muito maior. Quero dizer que realmente acredito muito nessa juventude. Vai melhorar muito as condições de produção. Não só a produção normal, que precisamos, mas principalmente essa que está vindo e que considero muito importante, da biotecnologia, da agricultura 4.0, tecnificada.
O fato de a nova geração estar nascendo praticamente com a "tecnologia embutida" é o que pode ajudar a fazer a diferença?
Eu tenho um neto de três anos que, se está com o celular na mão, nem conversa com você. É uma tecnologia própria para essa juventude, não tenho dúvida. Eu, por exemplo, confesso que tenho dificuldade, porque vivo pendurado no meu smartphone ou no meu computador e, de vez em quando, a coisa engrossa, trava. Sabe quem eu chamo? A minha neta de 11 anos. Ela vem aqui e, com três toques no máximo resolve. E ainda vira para mim e diz: “Vovô, você não aprende”.
Este é um ano de eleições, e temos visto uma polarização muito grande no Brasil. Que impactos esse contexto pode trazer à produção é a segurança alimentar nacional?
Radicalização é a pior coisa para o Brasil, e estou sentindo que está havendo. Somos um país de gente diferente, sempre nos entendemos mais pelo bom relacionamento. A política brasileira era muito diferente do que está sendo hoje. Era mais por princípios, e isso está acabando. Isso é um perigo. Hoje, temos 40 e tantos partidos, e não vejo um que você possa dizer: “Esse tem princípio”. Agora, o que eu vejo é que a defesa da democracia é uma coisa que nós devemos fazer. Estamos em um regime democrático. Temos de desenvolver ciência e tecnologia, fazer com que isso transforme recursos naturais em riquezas palpáveis, garantir a competência do mercado, produzir e trazer recursos para poder ter uma vida melhor. O Brasil está longe na escala de satisfação em função das condições de vida. Nosso IDH é muito baixo.