Um tombo no meio de uma apresentação da escola me ensinou que tenho que levantar depois de cair. E, preferencialmente, fazê-lo rápido. Eu tinha nove anos e estava dançando balé há poucos meses. Fascinada pela sapatilha de ponta, queria mostrar minha conquista aos colegas da turma. Então, propus à professora encenarmos uma história de um livro que eu tinha em casa. Eu nem queria ser uma das personagens principais, queria ser a borboleta, para poder "voar" na minha sapatilha de ponta. Fizemos as fantasias com o que tínhamos em casa e na escola, ensaiamos e fomos apresentar a peça para nós mesmos no fundo da sala de aula. Eu só tinha que atravessar de um lado ao outro, mas escorreguei e caí não muito depois do início do trajeto. Lembro claramente que respirei, levantei, subi na ponta de novo e segui. Se não o fizesse, desestabilizaria todo mundo e a peça tinha que acontecer e ponto.
Não chorei depois. Quer dizer, não por fora. Por dentro, eu me rasguei e, por muito tempo, a lembrança doeu um bocado. Com o passar dos anos, outras dores maiores foram minimizando a angústia da lembrança. A serenidade que o avanço da idade nos traz - ou deveria trazer - também foi me fazendo lembrar mais da parte em que eu levanto do que do momento da queda.
Também comecei a me dar conta que eu segui organizando apresentações da escola com ainda mais gana. Adorava ensaiar um teatro ou criar uma coreografia. Pegava as roupas da minha mãe para mim e para vestir as colegas. Fazia roteiros, escolhia músicas, às vezes errava a coreografia, mas recomeçava confiante, o que até ajudava para que poucos percebessem o deslize.
Do balé, fui para o flamenco pouco tempo depois. Ainda adolescente, aprendi a fazer maquiagem de espanhola e subia em palcos incríveis de Porto Alegre para bailar. Errei a coreografia algumas vezes, mas não me apegava ao pânico e seguia em frente. E na frente! Sempre fui e, portanto, costumava ser "ponteira" de palco. Em milésimos de segundo, sempre me vinha (e vem) a imagem do tombo que eu tomei quando era uma borboleta na 4ª série.
Eis que minhas duas profissões envolvem a exposição. Seja como apresentadora de eventos ou como jornalista, trabalho em palcos. Às vezes, ainda tenho deslizes, saias justas e até mesmo rasteiras. A convicção, o jogo de cintura, a resiliência, a vontade de entregar o que é preciso ajudam a levantar depois de cair.
É clichê e impressionante como pequenos (ou grandes, do ponto de vista de uma criança) acontecimentos da nossa infância nos marcam para sempre. Há duas formas de enxergá-los. De um lado, mostram como somos, pois nossa forma de interagir com uma situação na infância já escancara nossa personalidade. De outro, eles deixam marcas, para o bem ou para mal. Ou, no meu caso, para o mal e o bem. Sempre penso que somos colchas de retalhos, sendo que muitos deles são coletados por nós quando somos crianças. Alguns arrancamos fora com o tempo, outros são difíceis de tirar, outros temos que resgatar porque são importantes e ficam puídos... Eu acho a minha colcha da vida bem bonita, mas estou sempre tirando antigos e colocando retalhos novos nela, enquanto preservo aqueles que são minha essência e não abro mão.
Eu resgato minha infância com frequência para guiar meus filhos na vida deles. Atena, aos 10 anos, teve uma apresentação na escola no mês passado. Estava um pouco tensa. Conversamos por alguns momentos sobre como lidar com a insegurança. Recordei das minhas experiências de infância ao dizer a ela que o peito dói, que os dedos das mãos se curvam enrijecidos, que o queixo quase encosta no peito porque os ombros se arqueiam. Compartilhei com minha guria as ferramentas que eu usava, tentando fazer o movimento físico contrário da tensão, respirar um pouco mais fundo e pensar em coisas boas. Contei a ela sobre como é difícil para a mamãe tirar fotos posadas no trabalho e que, para sorrir, eu penso nela e no mano Gael.
É um exercício curioso, às vezes dolorido, mas fascinante resgatar a origem do que nós somos. Olhando as fotos que ilustram este texto, fico pensando em tudo que eu vivi desde que as tirei, na minha infância. Reflito sobre o que aconteceu depois que me mudou e sobre aquilo que segue igual à Giane de ontem e que preservarei para a Giane do futuro.
Para fechar, foi bom compartilhar com alguém, pela primeira vez, o meu tombo de borboleta.