Cresci praticamente sem conhecer brinquedos industrializados. Morando na roça, nosso contato com o mundo exterior era mínimo. Não tenho nem mesmo uma foto de quando era bebê. No primeiro retrato, eu devia ter uns quatro anos e minha irmã, três. Nossa mãe, que aprendera a costurar aos 14 anos, nos vestiu com a melhor roupa, feita por ela, para posar diante da máquina do velho Arno, o fotógrafo.
Nós duas choramos de medo daquele homem estranho e saímos na foto com cara de bicho do mato. Na segunda, no casamento de uma prima, já não ficamos com medo e parecemos duas crianças normais, com nossa tia um pouco mais velha.
Brincar de casinha era a coisa mais comum entre as meninas, uma espécie de treinamento para a vida adulta. Na falta de uma casinha de verdade, limpamos um espaço no meio do erval e demarcamos nosso território. Antes de tudo, fiz o jardim. Ali, passávamos horas brincando de donas de casa. Como meu pai aplicava injeções nos vizinhos, vidrinhos de penicilina viravam vasos. Embalagens de adubo se transformavam em cortinas. Frutas eram presentes de uma vizinha para outra, seguindo a tradição dos adultos de compartilhar o pouco que se tinha.
Na falta de uma boneca, improvisei minha primeira "filha". Com um paninho branco e um pouco de lã de ovelha, fiz a minicabeça de bonequinha a quem dei o nome de Elenice. Não precisei me preocupar com braços e pernas. Como era um bebê, resolvi o problema colocando um paninho colorido na cabeça, como se fosse uma touca, e enrolando o que seria o corpo em outro pano, pouco maior, imitando uma manta. Quando enfim ganhei a primeira boneca (de plástico, sem cabelo, com braços e pernas sem articulações) eu já estava lá pela sétima série e aprendi a fazer tricô para poder vesti-la.
Com nossos primos, brincávamos de pular sapata, de "mamãe posso ir", de pega-pega, gata-cega, ciranda cirandinha e outras cantigas de roda que não faziam nenhum sentido. "Eu sou pobre, pobre, pobre de marré, marré de si". Nunca entendi a letra, mas há alguns anos meu professor de inglês me explicou que "marré" era de Marais, o bairro francês onde nasceu e viveu o escritor Victor Hugo, e que "marré de si" era "Marais" de "ici" (aqui).
Quando entrei na escola, aos cinco anos, abriram-se as portas do mundo. E o divertimento preferido passou a ser brincar de escola. Com as pedras de carvão que saíam do forno de pão, eu escrevia palavras e números em pedaços de tábua e minhas irmãs tinham de frequentar as aulas e me chamar de professora.
No turno inverso da escola, o que poderia parecer brincadeira era trabalho, como conduzir o cavalo que puxava a capinadeira para o pai limpar a lavoura. Naquele tempo, ninguém falava em trabalho infantil, nem a gente se importava de andar a cavalo pra lá e pra cá. Pior era lavar a louça.
Na escola, terminou antes de começar minha carreira de atriz. A professora Celmira, de quem guardo as melhores lembranças, resolveu encenar Chapeuzinho Vermelho. Sempre fui boa em decorar textos. Por isso ela me escolheu para ser a Chapeuzinho. No primeiro ensaio, quando a vovó passou a faca na barriga do lobo, o Moacir Soares, e jorrou aquele Q-suco de groselha, entrei em pânico e pedi para sair do elenco.
Minha infância terminou aos 10 anos e meio, quando precisei sair de casa para estudar e tive de amadurecer à força. Minha tia era zeladora do colégio e morava em uma casa nos fundos da biblioteca. Ali, descobri que o paraíso existia e que só precisava de tempo para frequentá-lo.