Fui uma guria de apartamento, mas voei em mil aventuras. Bem longe da Cidade Baixa, o bairro de Porto Alegre que vivi minha infância, mergulhei nas aventuras de Narizinho e Pedrinho do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Viajei com as travessuras de Emília e brilhei o olho com as edições novas da revista Recreio.
Minha mãe foi a culpada, como são todas as mães, porque, quando nasce a mãe, nasce a culpa. Dona Mirta é jornalista, das poucas de uma redação tão masculina dos anos 70. Foi ela que me ensinou, desde cedo, a encontrar refúgio no mundo inventado. Era ela que alimentava minha paixão pelos livros e pelas letras com livros de presente.
Se eu ficasse doente, ganhava livros para ler na cama. Se eu ficasse sozinha no período de férias, era recompensada pela companhia dos livros. Se ela tivesse folga, a gente poderia ir juntas na livraria Sulina da Borges de Medeiros.
Com o tempo, os livros passaram a preencher meu recreio escolar. Sim, eu fugia na hora do intervalo para retirar livros. Levava eles para casa e aproveitava para ler antes de dormir. Ler para chamar o sono foi um hábito da infância que me acompanhou toda a vida.
Dona Mirta alimentou outra "mania", a de escrever. Todo aniversário, eu ganhava um presente e cartinhas dela escritas à mão. Certa vez, ganhei uma bota de canos longos e camurça preta. Junto, veio a esperada cartinha. No texto, havia uma recomendação valiosa. Minha mãe sugeriu que eu conhecesse os poderes dessa "bota mágica". E recomendou um conselho para a vida: "Filha, veste as botas e segue sempre em frente, de cabeça erguida e com o olhar para as estrelas." Resultado de tudo isso? Virei uma contadora de histórias, tenho sempre um tanto delas na minha cabeça.
Essa criança acompanhada de muitos personagens nunca me abandonou. Inclusive, é ela que me dá força nos dias difíceis. Aos sete anos, já escrevia cadernos com longas histórias. Colecionei muitas tramas na infância. Aos 21 anos, fiz da escrita e da narrativa audiovisual minha profissão. Virei jornalista sem outra opção.
Quando meu filho, João Pedro, nasceu, eu repeti o ritual familiar. Comprei muitos livros. Primeiro, investi naqueles de plástico paro o banho. Depois, chegou a hora dos modelos sonoros, cheios de cores. Os desenhos já eram bem mais incrementados do que no meu tempo. Aos poucos, percebi que só os livros sonoros alegravam Pedrinho. Nada de carrinhos, dinossauros nem jogos.
João Pedro jamais brincou com brinquedos. Aos três anos, o diagnóstico de autismo explicou a preferência pela sonoridade. O ouvido hipersensível apreciava a boa música. A falta de abstração era a responsável pela falta de interesse nos brinquedos. E eu, que sempre fiz de tudo para ajudar no desenvolvimento do meu filho, mal podia imaginar que estava só no início de uma caminhada transformadora.
Com a agitação de um autista, João Pedro não parava para escutar histórias. Quando abandonou os livros sonoros, não encontrou mais sentido nos livros de leitura. Não prestava atenção no texto nem na minha voz.
A agitação peculiar do autismo também me impedia de levar Pedrinho em praças públicas. Era perigoso correr demais e escapar para o meio da rua. Então, inventei um programa seguro de fim de semana. Se era para correr sem rumo, eu resolvi o problema levando ele para correr nas grandes livrarias. Se é para ficar agitado, que vá se agitar entre os livros!
E assim fomos adaptando a infância do meu filho, eu e meu marido. Todos os dias, sempre. Essa é a aventura e a grandeza de uma mãe: apoiar e ter orgulho de qualquer filho.
Mas eu nunca desisti. Nem dos livros, muito menos do Pedrinho. Durante anos, pedi muitos conselhos para os professores. Meu sonho era que ele aderisse à leitura. Nenhuma estratégia funcionou durante anos. Certa vez, aos 10 anos de Pedrinho, peguei um livro que trazia como tema um hiperfoco dele, a praia. Sim, os personagens preparavam uma viagem para conhecer o mar. E eu percebi que ele esperou até o fim da história e vibrou com a aventura rumo ao mar.
Isso mesmo!! Depois de quase 10 anos, reconectei meu filho com as palavras de um livro. As histórias me salvaram mais uma vez! O segredo dessa pequena e grande vitória? Ele estava escrito nas cartinhas da Dona Mirta. Caminhe sempre olhando para a frente, com a cabeça erguida e o olhar para as estrelas!