Desafiada a escrever um texto sobre a minha infância, alusivo ao Dia das Crianças, confesso que me vi diante de um dilema que talvez soe familiar a quem é mãe de um bebê de alguns meses de vida: eu só enxergo a infância dele. Imbuída da missão, me esforço para buscar na memória alguma lembrança sobre quem fui até o distante dia 17 de fevereiro de 2023. Em vão. Um processo ainda não decifrado pela ciência apagou da minha mente a pessoa que eu era antes de me tornar mãe. Calma, me dizem as mães lá na frente. Isso também vai passar.
Por isso, peço escusas, caro leitor, cara leitora. Enquanto ainda não passou, contarei sobre a infância do novo dono do campinho. Gabriel Matos Gabardo, sete meses, 72 centímetros. Eu sempre disse que estava para nascer o homem que mandaria em mim. Pois bem. Ele nasceu.
Gabriel tem uma primeira infância com o olhar atento de um pai e uma mãe jornalistas. E sublinho a profissão para explicar (talvez mais a mim do que a ele) que os pais precisarão trabalhar em sábados, domingos e feriados; em dias de enchentes históricas ou de jogos do Brasil nas eliminatórias da Copa do Mundo. Ainda assim, não lhe faltam colinhos, cuidados, beijinhos no pescoço e muito amor.
Sobre isso, uma nota importante: os especialistas têm insistido na ideia de atenção total aos primeiros 1000 dias de vida, período que soma os 270 dias da gestação aos 730 dias até que o bebê complete dois anos de idade. Segundo a tese, este intervalo de tempo é crucial para o desenvolvimento físico e mental do indivíduo. Uma espécie de era de ouro. E, no meu caso, o príncipe parece saber bem disso.
Não à toa, move os lábios para formar um sorriso banguela, com apenas dois minúsculos dentinhos, cada vez que vê a mamãe sentar-se à sua espera na poltrona de amamentação. Por aqui, são horas e horas diárias dedicadas ao aleitamento materno, que foi exclusivo até o sexto mês de vida. Um processo que exige muito mais do que amor. Tem entrega, esforço físico e mental, uma boa dose de resiliência e uma pitada extra de resistência a dor.
Mas há, para os pais, um momento singular dessa primeira infância que o escritor Antonio Prata, autor do delicioso Nu de Botas, descreve como a “chegada da alma”. Trata-se do momento em que uma chave vira após mais ou menos três meses da estreia do recém-nascido. No período anterior, é quando entregamos tudo ao bebê: nossos braços, colo, peito, horas de sono. O que recebemos de volta, contudo, são choros inconsoláveis, cocôs explosivos na madrugada e uma sequência de cólicas enlouquecedora.
Não que isso não continue. Mas aos três meses (cabe margem de erro para mais ou para menos), algo de mágico acontece e aquele pequeno ser, que não consegue nem sequer sustentar a própria cabeça, começa a entender que nasceu. A partir dali, ele sorri de volta para você, enquanto você o embala. Começa a ficar mais tempo com os olhinhos abertos e, de repente, te mira como se dissesse: "obrigada por estar aqui". Isso sem falar na gargalhada. Ah, como eu amo aquela gargalhada! É como se a alma começasse a preencher aquele corpinho. E, quando você menos percebe, sua alma também está preenchida. Você é o mundo daquele ser.
A má notícia é que não, ele não lembrará disso para futuramente contar em uma crônica especial de Dia das Crianças a ser publicada no jornal. Mas os estudos mostram que as consequências de toda essa entrega são para a vida toda. Esses momentos em que os pais brincam, dão carinho, fazem cócegas e ninam os bebês são capazes estimular o cérebro e promover conexões que serão a base para a inteligência, habilidades diversas e o desenvolvimento de seres humanos. Podem, inclusive, ter consequências duradouras sobre a saúde física e emocional do indivíduo. Em suma: a ciência diz que o afeto é capaz de moldar o cérebro do bebê.
Portanto, se você é pai, mãe ou pretende sê-lo, não perca a chance de se entregar à era de ouro. Abrace, beije e nine sua criança. Dedique-se à infância. O dia é dos pequenos. Mas quem ganha o presente somos nós.