Na madrugada do dia 1º de abril de 1964, o então deputado federal Rubens Paiva fez um discurso acalorado na Rádio Nacional, com um apelo em defesa da legalidade do presidente João Goulart. O golpe militar estava em andamento desde o dia anterior e o discurso de Paiva se tornaria histórico por sua coragem de criticar abertamente a ruptura democrática testemunhada naquele momento. Na fala, ele ainda criticou o governador de São Paulo, Ademar de Barros, apoiador do golpe, e conclamou trabalhadores e estudantes a defenderem a legalidade.
Os tempos estranhos que vivemos exigem que nos posicionemos em defesa do óbvio
A história de Rubens Paiva é conhecida e voltou às rodas de conversa devido ao belíssimo Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, inspirado no livro de mesmo nome e que se você não leu, recomendo que o faça para ontem. O filme venceu o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza e disputa a indicação do Brasil ao Oscar.
A coluna, contudo, não pretende se estender sobre o longa, mas sim refletir sobre cerceamento ao discurso de um parlamentar, algo que remete ao período nefasto e abominável da ditadura cívico-militar. Naqueles anos, 173 mandatos de deputados federais seriam cassados por instrumentos arbitrários, uma violência imposta não somente contra o parlamento, mas contra o povo que elegeu seus representantes.
Anos mais tarde, a retomada da democracia trouxe consigo um esforço de criação de instrumentos que assegurassem aos congressistas o direito à expressão e à crítica, a despeito de quem estivesse no poder. “A imunidade parlamentar foi uma conquista da democracia após o período da ditadura militar, que perseguiu deputados e senadores”, nos lembrou o psolista Chico Alencar, nesta semana, ao se posicionar contra o indiciamento de Marcel Van Hattem (Novo), por falas contra um delegado da PF. Chico tem razão. A abertura de um inquérito e o indiciamento de Marcel por discursos na tribuna são incompatíveis com a prerrogativa de imunidade parlamentar. Goste-se ou não do conteúdo, a fala no parlamento é protegida por este instrumento que, ressalto, foi criado como uma espécie de trava ao arbítrio. É preciso lembrar.
Os tempos estranhos que vivemos exigem que nos posicionemos em defesa do óbvio e, neste caso, do Estado democrático de direito. Seja através do reconhecimento da imunidade parlamentar, seja para exigir punição a aventureiros golpistas – trama que, aliás, tem sido revelada a partir do exímio trabalho da Polícia Federal.