Cresce o debate sobre o uso de passaportes vacinais para reduzir a circulação de pessoas não vacinadas em locais como shoppings e eventos. Em São Paulo, será exigido o documento para entrar em grandes eventos e, talvez, até em estabelecimentos comerciais. Aqui em Porto Alegre, o prefeito Sebastião Melo tem rechaçado a ideia. Nas conversas que a coluna tem com entidades de varejo, no entanto, percebe uma grande simpatia com um possível passaporte vacinal, mas também uma insegurança jurídica. Por isso, o programa Acerto de Contas, da Rádio Gaúcha, entrevistou Marcelo Dornelles, procurador-geral de Justiça do Rio Grande do Sul, para saber as questões jurídicas que envolvem a medida. Confira:
Mesmo comerciantes que apreciam a ideia, têm receio jurídico sobre a exigência do passaporte vacinal. Qual o posicionamento do Ministério Público?
Nós não tivemos nada formal para que o Ministério Público tivesse um posicionamento sobre isso. Eu vou te dizer o que eu acho. Acho até que eles têm razão em ter uma certa insegurança, mas nós vemos - eu, especialmente - com excelentes olhos a ideia do passaporte vacinal. Evidente que é uma postura do prefeito e está ligada à autonomia e competência dele, mas eu vejo com bons olhos. É aquela velha disputa entre o direito individual e o direito coletivo. Como normalmente nos posicionamos nessas questões? Bom, tu tens tua liberdade até onde ela não interfira na vida dos outros, na saúde, na segurança. Aí, o poder público pode, de alguma forma, intervir na autonomia das pessoas. E assim é para várias questões. Acho que um exemplo que temos conversado aqui, que se espelha, razoavelmente, é a questão do fumo. A pessoa pode fumar, mas ela tem locais onde que pode fumar. E podem ser negados acessos a área de fumantes em hospital, em algum centro comercial, em avião. É muito parecido: eu não vou te proibir de fumar, mas fuma longe daqui. Eu acho que aqui se assemelha, dessa forma. Eu acho que sim, que é possível, acho até que deve ser incentivado isso. Eu vejo com preocupação e custo a entender por que as pessoas, ainda assim, não querem se vacinar, com tudo que vem acontecendo. Eu tenho dialogado, inclusive por aqui. O que ouvimos: algumas pessoas falam que tomaram a primeira vacina e tiveram muita reação. Então têm medo da segunda. Outros, por questão de ideologia. Por exemplo, aqui no Ministério Público. Agora, praticamente todos já se vacinaram por causa da idade, que já chegou até os 18 anos, mas lá atrás foi colocado que teriam que voltar, 15 dias após a segunda dose da vacina na categoria. Não podemos ficar mais refém de uma ação individual que prejudique o coletivo. Acho que seria importante ter uma regulamentação, mas não vejo nenhum problema legal de tomar uma postura impeditiva, seletiva, no tocante de, sim, fazer algumas restrições às pessoas que não tomaram a vacina.
Veja a entrevista em vídeo:
O próprio lojista ou proprietário do restaurante poderia tomar essa iniciativa sem a necessidade de esperar uma norma? Claro que a norma poderia padronizar, mas o lojista pode tomar essa decisão?
Eu penso que sim. O ideal é ter o regulamento público, que dê limite a algumas situações. Mas eu não vejo impeditivo. É um estabelecimento privado. Ele pode determinar que a pessoa não entre fumando, não entre bebendo, sem camisa. Ele pode delimitar que não entre sem um comprovante de vacinação.
Ainda mais com o argumento que acaba sendo um estímulo para vacinação, para proteção dos outros clientes e dos seus funcionários.
Isso. Estamos tratando de saúde pública. Nas restrições do direito individual, das liberdades individuais, em que nós estamos discutindo saúde pública, evidentemente que pode haver restrições sem prejuízo nenhum.
E no caso de ser uma norma da prefeitura, aí poderia ter sanção? Alguns países, por exemplo, estão dando multas..
Eu não acho necessário multa. Temos aquela cultura de que a norma sem multa não será respeitada. Por exemplo, o comerciante vai multar a pessoa? Não, ele só não vai deixar entrar.
Mas no caso de ser uma obrigatoriedade para que os comerciantes não permitam a entrada. Aí, se eles permitirem, contrariando a norma, eles poderiam ser punidos?
Aí, já é mais questionável. Acho que a norma deveria ter o plano de regulamentar e possibilitar que o comerciante que quer restringir, ele assim o faça. A obrigação de todos, eu já acho que seria um pouco de excesso. O que estamos vendo é que alguns querem aderir a essa postura de evitar o trânsito de pessoas sem vacina no seu estabelecimento, mas não estão se sentindo respaldados. Ora, se dê o respaldo para essas pessoas. Mas a obrigatoriedade, a pena de multa, eu já questiono.
No ano passado, falamos muito da questão do lockdown, que, para acontecer, teria de ser determinado pelo governo federal. Isso atinge o direito de ir e vir e poderia ocorrer em estado de exceção. Mas ouvi por aí esse argumento de o passaporte vacinal podia ferir o direito de ir e vir das pessoas. Seria o caso?
Eu acho que não. Só se fizéssemos na rua. O teu direito de ir e vir é na rua. No prédio público ou privado, tem regras. Acho que é um argumento perdido.
Até por isso que dizíamos que nunca tivemos lockdown.
É, porque na verdade, o quase lockdown se deu pela pressão que houve, pela dificuldade, pelo aumento da pandemia. As autoridades foram à rua e pediram para as pessoas não saírem. Mas não houve lockdown. Mas aqui estamos falando de serviços públicos e privados, não no direito de ir e vir.
E teria que partir do executivo municipal?
É o ideal. Dentro dessa ideia de normas, o Estado até pode fazer uma norma mais genérica, até para respaldar os municípios, mas o ideal é que dentro da autonomia local de cada município, eles possam estabelecer uma regra. Mas não há prejuízo para o Estado, caso faça uma norma um pouco mais genérica para respaldar isso.
Outro questionamento é sobre a atuação do Ministério Público nessa questão específica. Além, claro, da orientação e do esclarecimento do MP. Alguma situação sobre passaporte vacinal provocaria a atuação do Ministério Público?
Não me parece, sabe? Acho que estamos mais na ideia de respaldar a política pública, de trabalhar a conscientização pela vacina, de incentivar as pessoas a se protegerem, a protegerem os outros, mas não me parece que tenha uma situação que, nesse particular, dependa da intervenção. É evidente que pode, em um caso concreto, gerar uma situação que chegue ao Ministério Público. Acho que está mais focado no incentivo e no apoio que as regras de proteção à saúde sejam bem aplicadas.
Tem uma discussão parecida na esfera da Justiça do Trabalho, que já vem de mais tempo, que é a possibilidade das empresas de demitirem por justa causa os funcionários que se negarem a se vacinar, podendo se vacinar. Estar já no seu momento na fila da vacina, e recusar a vacina. O entendimento tem sido de que pode, pode ser por justa causa. Uma das argumentações cita decisões do Supremo Tribunal Federal com o entendimento de que os governos poderiam estabelecer essa regra pelo coletivo se sobrepor o individual. E pelo que entendo, se aplica também no entendimento do Passaporte Vacinal. Tem a possibilidade, também, de restringir matrícula em rede de ensino?
Não. Porque aí se sobrepõe, também, à questão da educação. Uma coisa é parte privada, mas aí impedir o acesso à escola, teria um conflito maior entre dois direitos. Mas esse entendimento da Justiça do Trabalho, eu usei aqui no Ministério Público, como eu te disse. Todos que já tiveram condições têm que ser vacinados. Quem violar está sujeito a um processo administrativo.
Coluna Giane Guerra (giane.guerra@rdgaucha.com.br)
Equipe: Daniel Giussani (daniel.giussani@zerohora.com.br)
Francine Silva (francine.silva@rdgaucha.com.br)
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