A crise causada pelo coronavírus está gerando muitas dúvidas em relação ao futuro da economia. Como será a projeção para o resto do ano de 2020? E como fica a situação em 2021? O programa Acerto de Contas (domingos, às 6h, na Rádio Gaúcha) conversou com João Fernandes, economista da Quantitas Asset, para saber mais sobre o assunto. A instituição é uma das consultadas pelo Banco Central para elaborar o relatório Focus, divulgado semanalmente pela autoridade monetária. Confira as projeções atuais, revisadas claro:
A revisão do PIB foi forte, mas era esperada, com tudo que está acontecendo. O que pesou nessa projeção?
Realmente, esse ano foi de reduções substanciais no cenário que a gente trabalhava pelas principais variáveis econômicas. Acho que uma das principais variáveis que a gente alterou o cenário foi, justamente, o crescimento do PIB para 2020. Saiu de uma alta de 1,7%, um resultado até que teria sido melhor do que do ano passado, para um cenário de recessão bem substancial, de -2,8%. Uma contração da economia que está sendo impulsionada, principalmente, pela quarentena para conter o contágio do vírus.
Os segmentos que estão sendo mais afetados são de consumo, tanto de bens como serviços. A diminuição de circulação e até o fechamento de alguns estabelecimentos durante esse período terão um impacto muito substancial na atividade. Os mais óbvios são os serviços como alimentação fora do lar, lazer, transporte, mas também o comércio geral. Isso é uma parcela de atividade que estaria sendo gerada agora, no segundo trimestre, e que vai ser perdida. Ainda que uma parcela da atividade retome quando a quarentena terminar, muita coisa que não foi consumida, não voltará a ser. Ainda que algumas decisões de consumo estejam sendo postergadas e não anuladas, o consumo de alguns bens como uma perenidade menor não volta. Isso justifica uma atividade mais fraca.
A contrapartida disso está na parte de consumo do governo, que é uma das aberturas do PIB. Há um cenário de maior gasto, justamente para tentar atenuar esses impactos do coronavírus na atividade econômica, mas não é suficiente para evitar uma recessão. Além disso, o que se espera é que a maior parte do empresariado postergue decisões de investimento nesse momento, porque há uma série de problemas de futuro de caixa nas empresas, há uma incerteza enorme em relação ao futuro. Não é um cenário onde o empresário vai voltar a investir. Não é um cenário onde você vai, por exemplo, aumentar produção e estoque. Isso se traduz num nível de confiança muito menor. Então, essa abertura do PIB, que é o investimento também, é um dos segmentos que vão sentir. Conforme as coisas melhoram no segundo semestre, a atividade se recupera, mas acho que a gente vai ver realmente uma aceleração mais forte a partir do final do ano, entrando em 2021. Até por isso, a gente tem um efeito chamado de retomada, um rebote da economia, que após uma queda muito forte em 2020, você tem um crescimento mais forte em 2021. A gente revisou nosso cenário de 2% de crescimento em 2021 e para 3%, justamente por conta dessa retomada e de um efeito base. Você sai numa base muito baixa de produção e consumo, e entra no ano que vem crescendo. Comparando com essa base baixa, há uma taxa de crescimento maior. Mas é importante frisar, somando o que você está tendo de PIB entre 2020 e 2021, é um cenário ruim, de praticamente quase 0% de expansão de economia com o nível sem a pandemia do coronavírus.
E em relação à inflação, que está baixa. São os combustíveis? A demanda baixa?
A gente estava antecipando um número de inflação ao redor de 3,2% para este ano. Agora, nosso cenário é uma inflação de 1,6%, metade do aumento de preços que a gente colocava como cenário anteriormente. É o número mais baixo do período de meta de inflação. O único ano em que a gente teve uma inflação próxima disso foi em 1998. É historicamente baixa e ela se baseia em dois grandes fatores. Um deles é a queda substancial que a gente está vendo nos mercados internacionais nos preços de commodities como petróleo, minério de ferro e produtos agropecuários, como soja. Todos esses produtos tiveram uma queda de preço muito forte com a ameaça do coronavírus. E uma das commodities com quedas mais fortes neste ano foi, justamente, o petróleo. Também vemos um movimento por parte de alguns membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), particularmente Arábia Saudita e Rússia, no sentido de aumentar a oferta de petróleo no mundo com a intenção de derrubar o preço. É mais uma questão de competição com a indústria do xisto norte-americano, mas combinando esses dois processos, a gente viu uma queda do petróleo chegando a mínimas de muitos anos, de US$ 20 o barril. E, como o preço interno da gasolina se baseia no internacional, a Petrobras iniciou uma sequência de quedas muito forte. Derrubou o preço na refinaria e a gente já começa a ver os efeitos na bomba, com o preço da gasolina já caindo agora em março. Mas podemos esperar uma queda bem maior para abril, quando esse impacto da diminuição na refinaria começar a se intensificar. Além da gasolina, isso se traduz em outros combustíveis, como o etanol, que acompanha o preço da gasolina por paridade. Ele também acaba caindo, contribuindo para o impacto negativo na inflação.
Fora esses dois itens, outras commodities também têm seus impactos. Por exemplo, a queda do preço do algodão impacta o vestuário aqui no Brasil para baixo. Queda de commodities agrícolas, em geral, impactam para baixo o preço dos alimentos. Outra grande razão para uma inflação tão baixa é o efeito de demanda. Você está com uma das maiores recessões que o Brasil já passou, isso gera um efeito muito substancial sobre o consumo, até porque você terá um aumento muito grande do desemprego. Para 2020, a gente espera que o desemprego alcance patamares entre 13,5% e 14%. Mesmo no segundo semestre, conforme a atividade se recupera, a depressão da demanda precisa de um tempo até voltar ao normal. Então, o desemprego persiste por um alguns meses, ele não volta tão rápido quanto, por exemplo, as decisões de investimento, de produção e, posteriormente, de consumo. A contratação de pessoal novo é uma etapa posterior no ciclo de recuperação. Você acaba passando o ano todo com uma demanda muito deprimida, o que significa a pressão para baixo dos preços, porque as pessoas vão comprando. O consumo de bens e serviços vai continuar em um patamar baixo, mesmo a partir do momento em que se tenha uma recuperação no segundo semestre. Realmente, vai ser mais para 2021, quando vamos começar a ter uma queda mais substancial do desemprego, voltando para os níveis em que estávamos no final do ano passado. Também será quando a questão de preços voltará a aparecer e a inflação começará a acelerar para algo mais próximo das metas. Para 2020, o cenário é de uma inflação mais baixa. O dólar mais alto, claro, acaba contribuindo para cima em alguns preços de bens importados, mas não compensa. Porque, mesmo que o custo dos bens importados esteja maior, a demanda está muito baixa. As pessoas não estão consumindo esses bens no mesmo nível que estavam antes da recessão. Então, até a capacidade de repassar o aumento do dólar ficar menor, a importação em si fica menor, então acaba impactando menos esse efeito de commodities e atividade e você acaba com essa inflação de 1,6%.
E sobre a Selic? O Itaú divulgou uma projeção até menor. Se falava que o Brasil não tinha estrutura para um juro tão baixo.
Sobre a Selic, o nosso cenário também foi revisado para baixo. Antes dos impactos do coronavírus, tínhamos uma visão de que o juro seria mantido até então na mínima histórica de 4,25% ao ano ao longo de todo 2020. Não antecipávamos um ciclo de elevação do juros, até pelo contrário, a gente avaliava que, a partir do segundo semestre, o fato de o crescimento não estar tão robusto teria até mais risco de você ter um ciclo de queda. De todo o modo, o coronavírus mudou toda essa visão. Não só aqui para o Brasil, mas como para o mundo todo. O impacto substancial que o confinamento está tendo sobre a atividade global levou praticamente todos países do mundo a reverem suas políticas monetárias. Países desenvolvidos implementaram cortes de juros muito substanciais, a exemplo dos Estados Unidos, que, ao longo de reuniões extraordinárias, levou o juro para praticamente zero novamente. Vão mantê-lo entre 0% e 0,25% ao ano, além de anunciarem uma série de estímulos muito fortes no âmbito monetário, comprando títulos públicos e privados no mercado para injetar liquidez na economia. No Brasil, a gente também viu uma reação. O Banco Central cortou o juro em 0,5 ponto percentual na reunião de março, para a qual, inclusive, a sinalização no Copom anterior era de manutenção. Com a ameaça do coronavírus, o comitê mudou a sinalização e cortou o juro para 3,75% ao ano. Para as próximas duas reuniões, a gente espera que esse processo continue, que o Banco Central corte o juro em 0,5 ponto percentual cada vez, levando a Selic para um ponto terminal de 2,75% ao ano, nova mínima histórica do juros, justamente para combater os efeitos recessivos que o coronavírus está trazendo.
Porém, é importante frisar que tem um debate bem grande ocorrendo no meio econômico sobre a política monetária do Banco Central. A própria autoridade monetária está nesse debate pois, após o corte da última reunião, a sinalização que o Copom deu na sua comunicação não foi de muita propensão a novos cortes. Pelo contrário. Há uma preocupação hoje no Banco Central de que se o efeito de cortes adicionais na Selic de fato traria um benefício para a atividade econômica ou não. Porque, ao mesmo tempo em que você faz uma flexibilização monetária e diminui a taxa de juros de curto prazo, você também tem efeitos secundários. Uma preocupação é de que, com quedas muito fortes da Selic, haja uma aceleração da desvalorização do câmbio, fazendo o dólar subir de forma mais rápida. Além disso, como a Selic é o juro de curto prazo, que serve de referência para o crédito mais curto, também há uma preocupação do Banco Central de que taxas de juros que vigoram para empréstimos mais longos não caiam da mesma magnitude que a Selic, e haja um processo de abertura de diferença entre essas taxas mais longas com a Selic, o que representa um aumento da inclinação da curva de juros. E essa maior inclinação, em geral, se vincula, também, a um aperto das condições financeiras da economia, tendo uma contribuição negativa para a atividade. Em situações normais, a avaliação é de que cortes na Selic normalmente superaram o efeito negativo que teria na curva mais longa e no dólar, trazendo como um efeito líquido um aumento do estímulo para economia, uma melhora para atividade. Só que hoje não estamos em uma situação normal. Estamos passando por uma situação sem precedentes, uma recessão muito forte causada por um efeito que nenhum agente esperava, e tudo isso ocorrendo em um patamar de juros já muito baixo. Então, há uma parte do debate que está trazendo essa ideia de que o corte da Selic hoje não seria benéfico para atividade. A avaliação que a gente faz é que cortes adicionais na Selic ainda trariam benefícios, ainda teriam efeito líquido estimulativo, mesmo que tragam uma desvalorização maior do real e de uma inclinação maior da curva de juros.
Através do trabalho que a gente faz, a gente chega a essa conclusão estimando, justamente, o efeito sobre atividade de quedas no juros mais curto, versus o efeito que dólar e inclinação teriam, e identifica ainda uma contribuição positiva para economia. A gente avalia que, mesmo que o Banco Central esteja receoso nesse sentido, ao longo do tempo ele também vai começar a incorporar no seu cenário essa situação tão adversa que a economia passa, de recessão tão forte, e vai migrar para uma política monetária mais expansionista do que ele está sinalizando hoje. E a gente também acredita que uma forma de você mitigar esse efeito contracionista que, por exemplo, uma queda não tão forte do juro longo traria, é fazendo medidas adicionais no âmbito monetário. Uma delas, por exemplo, que não podemos descartar, é começar a fazer compras de títulos públicos e privados aqui no Brasil com vencimento mais longos. Com essas compras por parte do Banco Central, faz uma pressão para baixo no juro longo e compensa esse efeito no aumento na inclinação. Fazendo com que o estímulo às condições financeiras seja ainda mais forte do que só a queda da Selic sozinha proporcionaria. Isso é algo ainda que precisa passar no Congresso, algo que ainda não tem precedente no Brasil, apesar de já ser feito em outros países do mundo. Os Estados Unidos, por exemplo, há muito tempo implementam essas políticas de compra de títulos a mercado para manter o juro, não só apenas o juro curto, mas com investimento mais longo. Então, a gente acha que esse é o caminho que deve se desenvolver no Brasil para combater a recessão que a gente está passando, estimular o emprego e também para ser condizente com o regime de metas. Hoje, a inflação tá muito baixa. Estamos falando de 1,6%. Para o ano que vem, a gente estima uma inflação próxima da meta, mas ainda acho que o risco é para baixo nesse número. Há espaço para o Banco Central, pelo menos no que diz respeito à inflação, trabalhar com uma Selic mais baixa. E acho que fazendo isso em conjunção com as outras medidas, você consegue compensar essa piora que ocorreria nas condições financeiras, que o efeito líquido é positivo para a economia.
Ouça mais orientações do especialista na entrevista ao programa Acerto de Contas. Domingos, às 6h, na Rádio Gaúcha. Ouça aqui:
Colunista Giane Guerra (giane.guerra@rdgaucha.com.br)
Colaborou Daniel Giussani (daniel.giussani@zerohora.com.br)
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