A crise provocada pela pandemia já está exigindo a transferência de renda em vários níveis da sociedade. E isso tende a continuar para, em especial, proteger os mais vulneráveis. Para falar sobre o assunto, o programa Acerto de Contas (domingos, às 6h, na Rádio Gaúcha) conversou com Ely José de Mattos, economista e professor da Escola de Negócios da PUC/RS. Confira:
Uma das poucas coisas que me parecem certeiras na situação atual é que precisaremos de uma transferência de renda enorme e rápida no mundo todo. Aqui no Brasil, inclusive. A economia parou de uma forma que atinge em especial a renda dos mais vulneráveis, enquanto eles precisam - ao mesmo tempo - cuidar da saúde. É a tendência, não?
Sim. É bem fundamental essa transferência direta de renda. Vários países estão fazendo isso. A Alemanha está fazendo isso, os Estados Unidos está fazendo transferência direta de renda para os cidadãos na faixa de US$ 1,2 mil. Tem transferência no Reino Unido também. Claro que isso tem a ver com a ideia de que eu preciso deixar a economia minimamente ativa, mas, também, com a cobertura de necessidades das pessoas mais vulneráveis. Por várias razões, desde questões operacionais, que as pessoas precisam cuidar de sua saúde, até sociais, que as pessoas não podem passar fome. Tem toda uma questão conceitual em volta, que é um pouco diferente da chamada renda básica universal. Ela é um conceito bem antigo, que já existe há 200 anos e que é de dar uma renda fixa periódica para todo mundo. Nós não temos a renda básica universal, mas nós temos diferentes maneiras de abordar essa questão. Por exemplo, o Brasil tem o Bolsa Família, que é um programa bem sucedido e cobre parte dessa ideia de transferência direta de renda. Mas, nessa crise, precisamos de valores maiores.
Essa transferência de renda, por parte de governos, já começou aqui no Brasil. Concorda com as iniciativas e com o tempo em que são feitas?
Temos as transferências de renda via programas de assistência social. O Benefício de Prestação Continuada, que pega um determinado público, e as próprias transferências do Bolsa Família. Então, o Brasil vem fazendo isso já há muitos anos, mas não nunca tivemos uma renda básica universal. Agora, essa transferência que está começando a ser paga (o auxílio emergencial dos R$ 600) é novidade. Eu concordo sim com as iniciativas. Foi um movimento muito grande, de várias economistas, de pessoas da sociedade civil, defendendo essa ideia. Mas eu acho que veio com atraso. A desorganização do executivo, especialmente, dificultou muito isso. Se tu lembrar, até pouco tempo atrás, o Ministério da Economia defendia um auxílio de R$ 200, que depois de duas semanas, passou para R$ 300 e o Congresso foi lá, fez uma pressão violentíssima e acabamos com R$ 600 e R$ 1,2 mil para mães chefes de família. Tem gente defendendo, e eu faço coro com eles, que essa política seja permanente por, pelo menos, 12 a 18 meses, para ter uma constância. Se eu dou só por três meses e retiro, é apenas um choque de renda, que gera um pequeníssimo choque de demanda.
Precisaremos de mais. Quais possibilidades temos?
Eu acho que estamos no caminho certo nesse sentido. O que se desenhou agora, com esse projeto, está bem encaminhado. Nós não temos muito para onde correr. Precisamos fazer transferência direta de renda, para começo de conversa. As pessoas precisam ter recursos para se alimentar, para fazer as coisas básicas de saúde. Até para terem condições de se manterem ativas para, quando a economia retomar, poderem buscar emprego ou tocarem seu negócio. O que teríamos de possibilidades ainda é uma transferência de conhecimento e capital humano. Ou seja, treinamento de uma maneira mais organizada. As pessoas vão precisar se recolocar. Mas as transferências diretas são fundamentais sem condicionalidades, o que seria quase cruel. Não tem muito o que exigir de contrapartida.
Mas a transferência de renda não deveria ser feita, também, por governos estaduais e municipais?
Essa é uma boa pergunta. Estados e municípios não têm dinheiro, simples assim. O pacto federativo não foi pensado dessa maneira, vamos colocar nesses termos. Eu precisaria de recurso para poder transferir. Vamos pensar no Rio Grande do Sul, que precisaria ter uma rubrica orçamentária para fazer transferência direta de renda. O Estado chegou a ter complementações, mas as possibilidades são marginais. Isso é fundamentalmente uma prerrogativa do governo federal. Agora, se repensarmos uma estrutura tributária, lá no escopo da reforma, podemos conversar em outros termos. Mas, por enquanto, não. O que eu acho é que governos estaduais e municipais podem fazer medidas que não necessariamente envolvam transferência de renda, como cadastramento mais eficiente das pessoas no Cadastro Único para ter acesso ao recurso federal.
E na iniciativa privada? Como ela ocorre? E na nossa casa, como podemos fazer isso?
A iniciativa privada não tem muito como transferir renda direta. Por exemplo, se eu tenho uma empresa com cinco funcionários, hoje ela está fechada. Se eu não demiti, estou pagando e, então, estou sangrando a empresa. Estou pegando o capital de giro que eu tinha e estou transferindo. É uma transferência de renda forçada, vamos dizer assim. Isso não pode ser encarado como um tipo de política, mas sim uma ferramenta de exceção. Já na nossa casa, por exemplo, é manter o pagamento da pessoa que limpa, que vem conduzir exercícios, um fisioterapeuta. São serviços que recebemos em casa, mas que estão suspensos na quarentena. Manter o pagamento é transferência de renda, mesmo que também seja forçada. Eu estou deixando de aproveitar essa renda comprando outra coisa para manter o rendimento daquela pessoa que não está trabalhando. Há um padrão de consumo por trás disso. Será curioso olhar os dados de uma PNAD (a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE), de uma POF (Pesquisa de Orçamento Familiar, também do IBGE) daqui a três anos. Olharemos o ano de 2020 e haverá uma dinâmica da distribuição de renda. Essas ações na nossa casa não são de caridade, mas, do ponto de vista social, são coerentes e com uma carga moral muito grande. E eu quero acreditar que está sendo um movimento amplo.
Ainda vejo muito como futurologia, mas o jeito que teremos que nos adaptar - e a economia junto - a essa nova realidade mudaria muita coisa e muito rápido. De profissionais que são mais necessários à tributação de empresas, não?
Ainda é, sim, um exercício de futurologia. Li um estudo mostrando que em torno de 30% ou mais das atividades regulares passarão a ser remotas. Ou seja, está forçando uma adaptação em muitas atividades, acho que os negócios vão começar a perceber que faz sentido, que é possível, e por aí vai. Agora, a reforma tributária, por exemplo, terá de ser revista. Não poderemos olhar o projeto do mesmo jeito. Não tem como. O pacto federativo que temos hoje está sobre um crivo muito intenso. Vai mudar muito a coisa. Viveremos em uma realidade muito diferente. Ser economista, assim como ser jornalista, nesse período está sendo bem desafiador. Olhar para a frente e pensar como as coisas mudarão é um desafio grande e ainda acho que está muito no campo da especulação. Ainda não sabemos a profundidade do poço em que estamos metidos. Acho que ainda tem muita coisa para acontecer para conseguirmos tatear alguma retomada mais planejada. E uma das nossas dificuldades de planejar é que não sabemos muito bem como planejar. O governo federal está planejando menos do que poderia, mas, ainda sim, ter um plano completamente bem acabado beira o impossível.
Ouça mais da conversa com o economista no programa Acerto de Contas. Domingos, às 6h, na Rádio Gaúcha. Ouça aqui:
Colunista Giane Guerra (giane.guerra@rdgaucha.com.br)
Colaborou Daniel Giussani (daniel.giussani@zerohora.com.br)
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