Reza a lenda que ao colocar seus pés na pedra do porto do Rio de Janeiro, naquele 8 de março de 1808, a então princesa e futura rainha Carlota Joaquina teria balbuciado entre os tortos dentes: "Que horror! Antes Angola, Moçambique ou Timor". Soa como uma espécie de poema-desaforo em linha reta, uma diatribe rimada, um ferino haikai. Mas não se sabe se a frase é fato ou fake, pois a historiografia luso-brasileira sempre tratou a espanhola ardente e feminista avant la lettre Carlota com a mesma malevolência e malquerença que ela supostamente devotava ao Brasil.
A questão é que, se de fato disse isso, Carlota estava coberta de razão. Em 1808, o Rio de Janeiro era uma cidade feia e acanhada, que conservava "o cunho desolador do tempo dos vice-reis". E o que mais chamava atenção era a imundície. A capital do Brasil vivia absolutamente emporcalhada. Um dos pontos mais sujos ficava justo no cais do porto, em frente ao velho casarão — apenas dignificado com o nome de palácio — onde a Família Real iria se instalar. Exatamente ali eram lançados ao mar os dejetos dos moradores do centro do Rio.
Quem transportava aqueles assombrosos barris repletos de excrementos eram as mesmas pessoas que faziam todo o trabalho, limpo ou sujo, que precisava ser feito na cidade: os escravizados. Os que exerciam especificamente aquela função eram chamados de "tigres" — em tese cognominados assim por que viviam "rajados" pelo conteúdo que escorria das barricas. Mas como o Rio de Janeiro já era o Rio de Janeiro, certos senhores determinavam que seus servos deixassem o conteúdo cair na porta da casa de seus desafetos, ou mesmo na rua, aos pés deles, simulando um acidente. E supõem-se que alguns escravos até se oferecessem para realizar o "serviço" em troca de uns vinténs.
É em troca de uns vinténs que nas últimas semanas materializou-se uma criatura munida de um saxofone na esquina da minha casa. Ele chega por volta das 13h e começa a soprar seu instrumento — atividade que, em inglês, poderia ser chamada de blow job. Toca por umas três horas ininterruptas cerca de cinco músicas _ ou, pior dizendo, pequenos (e sempre os mesmos) trechos dessas músicas. Invariavelmente o cara esquarteja e escalpela "New York, New York", "My Way" e "Yesterday" e umas duas ou três mais. Sempre as mesmas, sempre o mesmo trecho delas, sempre na mesma hora.
Sei que não temos mais "tigres" no Brasil e não se pode mais lançar excrementos em frente ao palácio do governo — o que, de certo modo, configura um retrocesso. Mas uma pessoa frequentemente envolvida em polêmicas, e fervilhante de ideias malévolas, como eu, acaba de encontrar a formula ideal para cutucar seus desafetos: vou contratar o tiozinho do sax para fazer seu trabalho de sopro bem em frente às casas deles.