Já sei como eu queria escrever.
Queria escrever como quem sussurra, como quem protege.
Queria escrever como quem murmura e como quem protesta.
Queria escrever com um balbucio ainda que em meio à balbúrdia.
Queria escrever como quem segreda, como quem cochicha à orelha de um potro bravo e o doma assim sem relho, sem rédeas, sem regras. Escrever feito um suspiro _ etéreo, passageiro, relaxante. Queria escrever com a sonância quase sonâmbula das fontes que gorjeiam no palácio da Alhambra.
Mas também queria escrever com a violência de uma enchente, com a fúria das torrentes, os verbos fundidos feito os elos da corrente. Ah, e queria escrever com virulência _ pois se a linguagem é um vírus, como quis William Burroughs, queria escrever contagiando. Queria escrever com minha língua roçando a língua de Camões ou cavalgando o Rocinante. Queria escrever com fluência do sangue, do suor e do sêmen, semeando os campos ondulosos da semântica. E sim, queria arar a lavoura arcaica da gramática, fomentando fonemas, mas subvertendo a métrica com a minúcia dos milímetros. Queria ser malabarista das letras, na esquina das palavras, nesses tempos de sinais fechados para nós que somos jovens. Queria escrever no pretérito do futuro e ser sinuoso feito til, agudo qual acento, grave igual a crase. Queria ser insinuante como são as reticências.
Queria escrever com espumas flutuantes, filhas das vagas e dos ventos, vindo em ondas como o mar. Queria dar cor às vogais e regular o movimento das consoantes. Queria desvendar a alquimia do verbo nas entrelinhas estridentes dos romances de entretenimento. Queria escrever romances policiais quentes como chumbo e fugir a galope num romance de cavalaria. Queria escrever epopeias, prosopopeias, pornopopeias, inquietando a prosódia. Queria escrever na areia, qual o padre Anchieta, escrever com um cipó, feito Euclides. Queria escrever com o fio do Machado e ser nuvem de calças, igual a Maiakovski. Queria dormitar nas folhas de relva.
Queria escrever como quem projeta, como quem exprime, como quem expressa e como quem exige. Queria escrever fechando parêntesis, abrindo parágrafos, alarmando os parentes. Queria escrever como quem respira, como quem aspira, Como quem inspira quem o lê. Queria escrever como quem esgrima com o florete das letras em flor. Queria ser rígido na pesquisa, maleável no estilo, gentil no enunciado e febril no inexorável das conclusões inarredáveis. Queria uma prosa inoxidável de doloroso lirismo. Queria escrever sem alarde, sem alarido, sem algazarra.
Sobretudo, queria escrever sobre tudo. Sem frases feitas como frases que se autodestroem nas mensagens enviadas aos agentes secretos. Mas o que me resta é o espaço exíguo de mais uma crônica anacrônica bosquejada num providencial jornal de província.