Nunca sei onde andam meus livros: tenho 8 mil e lá se vão uns maus 10 anos que todos jazem fora de ordem, imersos no caos completo daquilo que certo dia constituiu uma biblioteca digna do nome. Assim, perdi a conta das vezes em que tive de comprar outro exemplar por não achar o original soterrado em alguma pilha. Mas sabe que pelo menos uma vez na vida isso se revelou uma bênção? Foi hoje mesmo — mas começou há cerca de dois meses, quando precisei consultar O Faroeste, de Dee Brown, o mesmo autor do tragicamente magistral Enterrem meu coração na curva do rio. Como sabia que David Coimbra não apenas era fã de Dee Brown, mas um feliz possuidor do livro — e que os dele ficam em seus respectivos nichos e estantes —, liguei para ele e perguntei se me emprestava.
— Sim, cafajeste. Te empresto, é claro. Mas não ouses me surrupiar essa preciosidade — disse ele, rindo.
David sempre gostou de me chamar de cafajeste — embora restringisse o uso do epíteto às vezes em que falávamos ao telefone, ou então aos textos de WhatsApp. Ao vivo, revelava-se sempre e invariavelmente o sujeito gentil e generoso que sempre foi, e segurava o impropério, que, aliás, sempre empregou como uma espécie de dístico de honra. Afinal, se ele de fato me julgasse um cafajeste, não teria mandado um Uber Flash entregar o livro minutos depois do pedido.
Quando desci para recolher a preciosa peça, o motorista abriu um sorriso: "Mas que dia esse meu, pegar uma encomenda com o David Coimbra e entregar para o Eduardo Bueno. Minha mulher não vai acreditar; aliás, ninguém vai. A não ser que esse pacote aí seja um livro. Então, Peninha, fala logo, que livro é esse, para eu usar como prova?"
O cara partiu "com o dia ganho", jurando que iria ler a saga do Oeste — essa vertigem selvagem, turbulenta, épica e arrebatadora —, tal como resumida pelo poder de síntese, humor ácido e interesse febril de Dee Brown. Espero que de fato o tenha feito, ou o venha a fazer. Pois O Faroeste é uma das obras-chave de minha vida, já que em 1998, quando me dispus a escrever meu primeiro livro, A Viagem do Descobrimento, o modelo "secreto" foi ele. Só que agora esse título de Dee Brown acaba de adquirir valor muito mais transcendental e inestimável para mim: afinal, o exemplar de David Coimbra ainda está aqui. E aqui ficará, até o dia em que eu o entregar, com toda pompa e solenidade, ao Bernardo, herdeiro dos sonhos, das missões e das obras de David.
E olhe que foram muitas as obras de David. Minha favorita, a que mudou minha relação com ele, foi o miraculoso Hoje Eu Venci o Câncer. Não apenas pela franqueza cálida, pela coragem em abordar o início da doença que o atingia, como pela leveza e despojamento com a qual ele foi capaz de narrar (e viver) sua própria via crucis. Além do mais, na mesma época, eu estava escrevendo, a duras penas, uma história do câncer no Brasil, lendo a fundo sobre o "imperador de todos os males", tal como o oncologista indo-americano Siddhartha Mukherjee definiu essa enfermidade que, por ser uma explosão de vida, uma espécie de big bang das células, acaba expandindo a morte.
Era impressionante o olhar "curioso" — tanto no sentido jornalístico como quase no "cientifico" — que David lançava sobre a maligna moléstia, que, por esse ângulo, quase deixava de lado sua malignidade para se tornar o tema, o case do autor. Naquela mesma época, no hospital A.C. Camargo, meu contratante para o dito livro, a pesquisadora Maria Isabel Achatz tinha descoberto que uma mutação no gene TP53, o chamado "guardião de tumores", era responsável por um tipo incomum de câncer, diabolicamente frequente no sul do Brasil. E mais: que o primeiro portador dessa mutação fora um tropeiro de Criciúma, que no século 18 fazia a "rota das mulas", unindo o sul de Santa Catarina aos confins do Rio Grande — e espalhando câncer ao longo do caminho. David espantou-se com a história, que compartilhei com ele, e estudou-a com afinco, embora não sofresse especificamente da dita Síndrome de Li-Fraumeni, o câncer derivado dessa mutação no gene P53.
Mas evidentemente esse não era nosso assunto predileto. Criciúma até podia ser um dos temas, pois ele morou lá e eu pesquisei um pouco sobre a saga das minas de carvão da região para um artigo sobre o magnata (hoje esquecido) Henrique Lage, e isso logo nos levava a falar fervorosamente da paixão dele (Lage, não Davi) pela cantora lírica italiana Gabriella Besanzoni, para a qual o louco Henrique mandou construir o soberbo Parque Lage, no Rio de Janeiro, depois de bloquear a saída da baía de Guanabara com os navios de sua Companhia Nacional de Navegação Costeira (aqueles cujos nomes começavam todos com "Ita"), para que a amada não pudesse zarpar de volta para a Europa antes que ele a pedisse em casamento.
Histórias assim encantavam David e ele ficava pensando em arrumar um jeito de contá-las todas, em crônicas ou num grande e interminável livro de causos, que, de algum modo, iria constituir sua própria coleção Terramarear, aquela série mítica que nos anos 1950 reuniu os melhores romances de aventuras de todos os tempos e que todos lemos com avidez e encantamento.
Tivemos, David e eu, nossas deambulações não apenas pelo mundo das letras. Pois perambulamos também por vários quadrantes do globo e suas redondezas. Estivemos juntos em Moscou, falando de Gorki e Maiakovski, bebendo vodka; flanamos pela Avenida Nevski, em São Petersburgo, discorrendo sobre os devaneios de Gogol e indo até a Estação Finlândia, para perceber que nem tudo que é sólido se desmancha no ar, tudo durante a Copa de 2018. Vi-o redigir suas colunas com rapidez assombrosa. Ele sempre escrevia mais e terminava antes de mim. Sempre. Mas a gente não cansava de ficar "competindo" e se inticando.
— Já acabei, Peninha. Não vamos beber? Quer tecer uma obra-prima? É só um texto pro jornal, amanhã embrulha peixe. Além do mais, eu já disse tudo que havia a ser dito sobre o jogo — asseverou ele em Abu Dhabi, depois da final entre Grêmio e Real Madrid, em 2017.
— Por acaso disseste que o Grêmio anulou por completo o goleiro deles, que nem viu a cor da bola? — rebati, com veneno. Ele caiu na gargalhada:
— Não, isso eu não disse. Mas garanto que tu também não contaste a história do Waltão, que parou o Di Stéfano naquele 0x0 (do Cruzeiro, de Porto Alegre), em 1953, contra esse mesmo Real Madrid aí. E olha que o jogo foi lá em Madri, não nessa espécie de Balneário Camboriú aqui.
E lá íamos nós beber — chá, no caso, pois nos tais Emirados Árabes não se bebe álcool. Mas bebe-se em Boston e fomos juntos na taverna mais antiga dos Estados Unidos, a lendária The Bell in Hand Tavern, fundada em 1795, sem jamais ter fechado as portas. "O Bar João, ali no Bonfim, também não fechava nunca", disse eu, sempre intrujão. "É, até que fechou de vez...", suspirou o David. Isso foi em 24 de maio de 2018, dia do aniversário de Bob Dylan e uma semana antes do meu aniversário de 60 anos.
Não falei com David no dia dos 60 anos dele, nesse último 28 de abril. Não vou mais falar com David de corpo presente. Mas estarei dialogando com ele cada vez que olhar aqueles seis volumes de Declínio e Queda do Império Romano, de Gibbon, que ele assegurava que um dia ainda iria ler na íntegra. Bom, agora terei que ler por mim e por ele.
Enquanto isso, o Bernardo lerá O Faroeste que dia desses vou devolver para que, a cada volteio das páginas, ele confirme aquilo que nós já sabemos: que David Coimbra foi nosso Billy, the Kid, nosso Touro Sentado, nosso Jesse James, nosso homem das montanhas, cavalgando altivo pela trilha das letras sem fim. E se alguém perguntasse onde aquele cavaleiro errante estava indo, ele responderia apenas: "Chegarei lá".
David Coimbra chegou ao cerne de nossas mentes e de nossos corações em mais de 20 livros, centenas de crônicas de jornal, incontáveis comentários no rádio e na TV e numa sequência interminável de conversas de bar — o único lugar onde se pode viver para sempre. Até porque essa vida não passa mesmo de um saloon meio fuleiro do Velho Oeste, com suas portas de vai e vem abrindo-se e fechando-se sem propósito aparente.
A não ser, é claro, revelar que estamos aqui para cantá-la como se fosse um épico. E para erguer um brinde aos irmãos em letras.