Em verdade vos e digo — e na maior cara de pau: fui uma araucária numa vida anterior. Sei que tão impactante revelação, feita assim, de chofre, nas páginas de tão moderado matutino, de uma cidade mais moderada ainda, poderá causar certa inquietude, um alvoroço, quem sabe até constrangimento, em especial em tempos tão racionalistas e céticos como esses em que vivemos. Mas de fato fui um majestoso pinheiro cravado no topo de uma crestada serra, remanescente da velha Gondwana, o continente ancestral, há uns 400 mil anos, mais ou menos. Lembro de tudo, com minúcias de detalhes — mas pelo pequeno espaço que disponho, e os módicos honorários que recebo, vou me reservar o direito de permanecer calado.
Conto apenas como ocorreu a epifania, o lampejo, enfim a descoberta de tão prodigiosa realidade. O causo deu-se já em pleno Holoceno que, como todo mundo sabe, é um dos períodos do Quaternário da Era Cenozoica do Éon Fanrozoico, que se iniciou a míseros 11.650 anos atrás e que, embora não tenha data certa para terminar, todos os seres sencientes esperam que se encerre logo. Trocando em miúdos, foi na década de 1970. Ah, a década de 1970! Mais especificamente em maio de 1977, em Canela, na Serra Gaúcha, onde nós, as araucárias (se é que elas ainda me permitem tal intimidade) vivemos há mais de 220 milhões de anos.
Trotava eu pelas ruas de pedregulhos, nos arredores das míticas ruínas do Cassino, quando um dos mais altivos exemplares das muitas araucárias que por ali ainda resistem, pôs-se a me atrair, me hipnotizar, me enfeitiçar. Fui então arrastado magneticamente até seu tronco rijo e rugoso e ao abraçar-me nele — pooooing — deu-se um daqueles efeitos especiais de filmes estilo Highlander: uma sucessão de imagens cósmicas percorreram minha mente e a seiva do pinheiro e minha corrente sanguínea se tornaram uma e a mesma, meus cabelos viraram grinfas, minhas unhas, pinhões, meus pés, raízes. Vi, e vivi, tudo com os olhos da mente.
Devo admitir que outra planta de poder que não uma conífera tomou parte na experiência. Mas nem por isso ela foi menos verdadeira. E até o fato de a dita araucária ter reduzido seu tamanho para minha altura (como se quisesse também me abraçar) tem comprovação científica: os pesquisadores da Fundação Zoobotânica do RS comprovaram, com achados fósseis em Faxinal do Soturno, que há 220 milhões de anos as araucárias, que então se espalhavam do Chile até a Índia, tinham apenas dois metros de altura.
Elas cresceram e multiplicaram-se, chegando a 50 milhões de pés, vários deles com mais de 50 metros de altura. Até que seres humanos cruzaram o oceano, escravizaram e mataram boa parte dos indígenas que viviam dos e entre os pinheirais e abateram quase toda a floresta. Eles jamais terão meu perdão — e, em silêncio, sigo urdindo minha vingança.