Sabe o Cheonggyecheon?
O que? Não sabe o que é o Cheonggyecheon? Ainda bem, pois nesse caso – ao contrário de regra em geral inabalável –, o desconhecimento pode amenizar a vergonha. Pois o Cheonggyecheon é um riacho que corta o centro de Seul, na Coreia do Sul, de leste a oeste. As origens de Seul remontam a 4 mil a.C. e o principal responsável pela escolha do local, de acordo com os preceitos do feng shui, foi justamente o Cheonggyecheon (que quer dizer “riozinho de águas límpidas”). Até o ano 1406, o Cheonggyecheonzinho se mantinha em seu “estado natural”. Mas em 1460 já havia virado um esgoto a céu aberto. Quinhentos anos mais tarde, o arroio – de apenas 5,8 km – foi retificado e recoberto por uma mortalha de concreto. Mas o que parecia ser o fim foi na verdade o (re)início da história. Alvo de um projeto de despoluição, desde de 2005 o Cheonggyecheon está (quase) de volta ao seu “estado natural”: hoje ele é outra vez um “riozinho de águas límpidas”, com 25 espécies de peixes e lindas margens densamente arborizadas.
Por que estou falando nisso? Ora, porque o nosso Cheonggyecheon é o arroio Dilúvio, também chamado de riacho Ipiranga, ou, antes de “arroio Sabão”, ou antes ainda, de “riachinho”. Como o Cheonggyecheon, ele faz parte da história de Porto Alegre antes mesmo de Porto Alegre existir: a sesmaria de Jerônimo de Ornelas era delimitada pelo Gravataí (“rio dos gravatás”) ao norte e pelo Jacareí (“rio dos jacarés”) ao sul. Claro que você já percebeu que Jacareí era o nome original do também chamado arroio da Azenha, o Rubicão dos farroupilhas, que cruzaram o riachinho no alvorecer de 20 de setembro para tomar Porto Alegre.
Sim, o Dilúvio da ilhota, onde nasceu Lupicínio Rodrigues: do Areal da Baronesa, com seu quilombo, suas dores e seus tambores; da ponte de Pedra, vetusta e ancestral; do casario carcomido que se foi; dos salgueiros e chorões vertendo os galhos sobre a correnteza, como cortinas balouçando num teatro abandonado; das lavadeiras da prainha do Riacho com seu canto triste. O Dilúvio das pinturas de Angelo Guido, de Weingartner, Gotuzzo e Libindo Ferraz; dos poemas roídos por traças de Augusto Meyer e Álvaro Moreyra, que ninguém mais lê.
O Dilúvio, que há anos nos mentem que vai virar o nosso Cheonggyecheon. Mas a Coreia não é aqui. O Haiti é aqui.
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Mudando de saco para malas, mas sem deixar de falar de esgoto, faz uns dias que um de meus netos, de 7 anos, me disse:
– Vovô Edu, tive um pesadelo horrível.
– Sonhou com o que, meu amor?
– Com um bando de bolsominions....
– Vai passar, vai passar.
E vai mesmo, Mas isso não significa que vamos esquecer. Eu não só não vou como deixarei tudo registrado para a posteridade. Para quando o arroio Dilúvio – e o Brasil – talvez estejam fluindo com mais limpidez.