Conheça um pouco do acervo fotográfico de Lupicínio Rodrigues Filho, capturando a vida particular do pai:
Há uma foto esmaecida em que Lupicínio Rodrigues aparece rodeado por 28 parentes na casa da família na vila onde se criou o clã, a Ilhota. Estão lá, imponentes, os pais Francisco e Abigail ao centro, a avó Onorina, os irmãos, os tios e os sobrinhos em um raro registro datado talvez de 1936. Lupi teria 22 anos. Usa um bigodinho e já convive com as entradas da calvície. Repousa a mão sobre o irmão 11 anos mais novo, Robinson, único mano vivo, hoje com 89 anos.
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Afável, de sorriso generoso, olhos fundos e grandes e sobrancelha espessa, Robinson se parece muito com Lupi e guarda recordações da Ilhota. Depois de uma reunião como a da foto, diz ele, Lupi se encarregava de cantar um samba recente, sempre havia um novo. Melodia e letra brotavam rápidas, e era necessário memorizá-las. Se não estivesse transcrito em partitura, repetia o samba até que um músico amigo a traduzisse em pauta.
- Ele ficava assobiando baixinho a música, quase sussurrava. Se alguém o chamasse, levantava o dedo pedindo silêncio: estava compondo. Depois, colocava os versos em um papel - conta Lupicínio Rodrigues Filho.
- Também por isso a gente vivia cantando em casa - lembra Robinson, ele próprio compositor de marchinhas no número 97 da Travessa Batista, Ilhota, o endereço mágico de Lupi.
É o centro do primeiro território lupiciniano, a vila onde o compositor morou por cerca de 35 anos, até antes de 1950. Ilhota, Areal da Baronesa, Cidade Baixa e Colônia Africana supriam a cidade com músicos e inspiração. Mas viviam ao largo da intensa boemia e cena musical de uma elegante Porto Alegre dos anos 1920 em diante.
Por trás dos holofotes, fervia uma Porto Alegre B.
A antiga vila hoje compreende a região atrás do Ginásio Tesourinha, na Avenida Erico Verissimo, nas proximidades da Praça Garibaldi. Era diferente no passado.
Saía da casa de Lupi o bloco Divertidos Atravessados
Antes de a cidade retificar arroios e ganhar a Avenida Ipiranga, a Ilhota era engolfada de um lado pelo antigo Dilúvio e de outro pelo Cascatinha. Os dois se encontravam adiante e seguiam com um só braço por trás da Rua João Alfredo em direção à Ponte de Pedra, onde batia o Guaíba.
De tão ilhada, a vila ganhou um nome de guerra apropriado. Havia não mais do que quatro hectares, com duas ruas, a Ilhota e a Batista, e até o início dos 1950 as moradias simples, estreitas e compridas em terrenos longos e arborizados davam um ar interiorano.
Não fossem as enchentes dos riachos sob qualquer chuvisco, a vida ali não seria de todo ruim, a apenas dois quilômetros do centro da cidade. Robinson conta que, para ir à aula em dias de chuva, saía na garupa do pai.
A vila bucólica se transformou tempos depois em favela, quando ondas de migração do Interior ali se instalaram, até a remoção final dos casebres pelo Projeto Renascença, em meados da década de 1970.
Voltemos à foto. À sombra de um salso chorão, os Rodrigues se reuniam e logo haveria música.
Saía da casa do Lupi um bloco de Carnaval, o Divertidos Atravessados, que acolhia família e vizinhos, sempre no limite de 35 pessoas, segundo o regulamento dos cordões.
E só de irmãos vivos à época havia Airta, Erotilde, Gerotildes, Bolivar, Francisco, Valter e Abigail. Robinson, Onorina Caetana, Reni e os gêmeos José Joaquim e Jorge viriam depois.
Vestiam verde e branco os Atravessados e desfilavam em coretos da Rua dos Andradas e em outros tantos concursos carnavalescos, no Areal da Baronesa, nas ruas João Alfredo, Borges de Medeiros, Santana, Benjamim Constant, nos cines Coliseu, Capitólio, Castelo e Baltimore, na Praça Garibaldi e no Parque Farroupilha.
Dos Atravessados, Lupicínio era compositor, ensaiador, diretor de bateria e cantor do bloco.
Compor não era problema. Já havia consagrado a sua marchinha Carnaval aos 14 anos e desde cedo se envolvia com grupos musicais da Ilhota e da Cidade Baixa.
Difícil é imaginar Lupi e sua voz doce puxando um cordão carnavalesco, sem microfone ou carro de som.
- Talvez quando jovem tivesse um registro de voz mais alto - tenta explicar Lupicínio Filho.
Mas o próprio Lupi, o pai, declarara em 1953 ao Pasquim que desde os 16 anos já imitava o estilo brando do cantor Mário Reis, em contraste ao vozeirão de Francisco Alves.
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Antes da dor de cotovelo, sambas e marchinhas
Desde pré-adolescente, Lupi vivia metido em conjuntos musicais de adultos, em futebol no campo da antiga Rua Arlindo (o time do Rio-Grandense, do pai, Francisco, jogou na Liga da Canela Preta e tinha sede na sua casa) e em cordões de rua.
Lupi se aventurou em blocos maiores. Foi cantor e diretor dos Predilectos, na José do Patrocínio, e com eles venceu concurso com a marchinha Carnaval, de três anos antes. Conquistou um outro prêmio com Triste História, em parceria com Alcides Gonçalves.
Antes das lágrimas dos sambas-canções em dor de cotovelo, surgiram as marchinhas e os sambas.
Lupi também frequentou o Prontidão, sociedade que acolhia funcionários públicos, bancários e militares, ou seja, a fidalguia negra, em um sobrado na Barão do Gravataí, perto da Ilhota.
Além do bloco, o Prontidão brilhava com seus bailes no salão de cima. Assíduo na casa, Lupi se empertigava em terno e sapato bicolor, como exigiam as normas. Havia quem fiscalizasse na portaria. Se o traje do dançarino fosse repetido, não entrava.
Códigos rígidos dos bailes de sociedade repeliam também os negros mais pobretões dos salões espelhados do Floresta Aurora, na Lima e Silva.
Lupi cantava nesses clubes, já consagrado por Se Acaso Você Chegasse, gravado por Cyro Monteiro e prestigiado por sambas correntes na noite como Pergunta a Meus Tamancos.
Sua rotina, porém, continuava a dos botecos da Ilhota, o Bar Garibaldi e os redutos do Areal da Baronesa, o primeiro roteiro das namoradas.
Na Praça Garibaldi, ao lado da Ilhota, havia o clube de nome solene, o Nós, os Democratas, mais aberto e menos exigente e parada obrigatória para Lupi aos domingos. Ele cantava e dançava. A mesma coisa que fazia nos bailes do Gaúcho, na Olavo Bilac, ou no Salão Modelo, na esquina das ruas Miguel Tostes e Castro Alves, na antiga Colônia Africana, antes de ser desalojada pela especulação imobiliária que tomou conta do bairro Rio Branco.
Uma infinidade de músicos, muitos seresteiros e chorões, em variados conjuntos melódicos, jazz bands, orquestras e regionais animavam bares, clubes sociais, cassinos, cabarés, blocos carnavalescos, programas de rádios e cineteatros e seguravam uma noite rica de diversão. Lupi cresceu nesse caldo cultural e circulava nesses ambientes sem distinções de tribos.
Da Ilhota, o compositor assumiu outros territórios ao mudar de endereço e abrir casas comerciais, entre elas o Galpão do Lupi, na Rua João Alfredo, o Vogue Music Bar, na Avenida Farrapos, o Bar Churrascaria Jardim da Saudade, na Avenida Coronel Marcos, a Casa de Samba, na Praia de Belas, a boate Clube dos Coroas, na Benjamim Constant, o Clube dos Cozinheiros, na Rua Garibaldi, e o Batelão, na Cristóvão Colombo.
A lista sugere um Lupi empreendedor. Engano. Cada local era mais um pretexto de reunião de amigos em torno da música, até nas churrascarias.
Mesma ideia da família no número 97 da Travessa Batista, na Ilhota.