*Por Lara Ely
Jornalista, mestre em Comunicação e especialista em Gestão Ambiental
Entre shoppings, palácios e museus de uma das capitais mais high tech da Ásia, corre um riacho limpo, com peixes. As margens são calçadas, seguras e bem iluminadas. Refrescando uma espécie de floresta urbana, o curso d'água cenográfico, criado sobre outro, poluído e quase morto (e que permanece no subterrâneo), deveria servir de inspiração para Porto Alegre.
Caminhando às margens do Cheonggyecheon, em Seul, torna-se inevitável a comparação com o Arroio Dilúvio, na capital gaúcha. Primeiro, porque eles são visualmente muito parecidos. Segundo, por causa de sua história: problemas com o lixo, moradias irregulares, casebres e palafitas, alagamentos, trânsito caótico e importância no desenvolvimento da cidade.
A diferença é que lá a revitalização deu certo.
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Com a separação das duas Coreias depois da II Guerra Mundial, imigrantes instalaram-se em Seul. Na falta de espaço, as margens do arroio foram destino imediato dos estrangeiros.
Poluído e com nível de água baixo na década de 1950, o Cheonggyecheon representava uma ferida aberta para o saneamento. Até que, em 1976, o rio foi totalmente concretado.
Os vendedores ambulantes deram lugar a mercados modernos, marcando o início do crescimento de um polo turístico. Perto dali está o Dongdaemun Design Plaza, o Complexo de Palácios de Changdeokgung, além de linhas do metrô.
Com o passar do tempo, a explosão comercial trouxe consigo sérios problemas de saneamento. Em 2002, o então prefeito Lee Myung Bak (que antes havia sido presidente da Hyundai e depois tornou-se presidente do país) decidiu inovar, lançando um plano de revitalização ousado e polêmico. Mandou retirar o asfalto, derrubou um viaduto e contou com financiamento privado para uma enorme obra de revitalização.
Em dois anos, após centenas de reuniões com a comunidade e especialistas, surgiu um parque de 5,8 quilômetros, com pequenas cachoeiras e quase duas dezenas de pontes.
Embora tivesse secado, o Cheonggyecheon foi reabastecido com água tratada (a mesma que vai para as torneiras das casas). O líquido cristalino visto na superfície vem de outro curso d´água. O esgoto poluído que desaguava no rio foi desviado para as laterais, pelo subsolo, ficando longe dos olhos da população.
Local de Piqueniques e "um ar diferente"
Seul tem 10 milhões de habitantes, sete vezes mais do que Porto Alegre. Achar alguém que falasse inglês não foi tarefa simples, apesar de ser uma cidade cosmopolita. Estive lá em meados de outubro, um mês antes do já famoso festival das lanternas, criado em 2009. Em novembro, milhares e milhares de pessoas são atraídas pelos enormes adornos coloridos dispostos por 1,2 quilômetro de extensão entre o hotel Cheonggye Plaza e a Supyogyo Bridge. É como se fosse uma Sapucaí flutuante, mas sem samba-enredo nem mulatas.
No dia a dia do Cheonggyecheon, é comum ver executivos engravatados debaixo das pontes no intervalo do almoço, assim como muitos casais passeando de mãos dadas. Foi por mediar essa relação afetiva das pessoas com a cidade que o arroio coreano se tornou exemplo mundial. Lá, é possível ver ilustrada na prática a teoria do arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl, último conferencista do Fronteiras do Pensamento. Em entrevista a ZH, Gehl falou que um novo paradigma das cidades para as pessoas consiste em torná-las "habitáveis, sustentáveis e mais atrativas para estilos de vida mais saudáveis". Para transformar grandes centros urbanos em lugares melhores de se viver, ele propõe cinco passos, que os coreanos parecem ter estudado antes de reformar o Cheonggyecheon: "Fazer o design para as pessoas, investigar a cidade, criar redes de relacionamento, planejar com foco na qualidade de vida e construir de acordo com uma visão de mundo".
(Com a construção de uma ciclovia em torno do Dilúvio, começamos a trilhar esse caminho. Mas quem já percorreu o arroio de ponta a ponta sabe que restam muitos desafios. Além do lixo, problemas com insegurança e de acessibilidade desmobilizam a população.)
Em Seul, perguntei o que faz as pessoas gostarem tanto de estar perto do arroio.
O italiano Alberto Farnetti, 34 anos, disse que o cenário proporciona "respirar um ar diferente". Ele aproveitava a folga entre uma reunião e outra para conhecer o local antes de voltar para casa, em Bangcoc, na Tailândia. Yefen Kao, 25 anos, engenheira, passeava com os pais durante uma viagem de final de semana. Eles vieram de Taipei, capital de Taiwan, para conhecer o país vizinho e, assim, como boa parte dos turistas, a família aproveitou o Cheonggyecheon para organizar um piquenique.
– O prefeito teve mesmo muita coragem de fazer o que fez aqui, ficou muito bacana. Valeu a pena ter sido radical – afirma a engenheira, enquanto retira de uma sacola térmica um sanduíche e uma garrafa de suco de manga.
O arroio de Seul funciona como uma sala de estar a céu aberto para as estudantes Park Jeong Hae e Kim Mim Ji, ambas de 24 anos.
– A fluidez do rio, o silêncio e o verde nos trazem uma sensação boa, algo que não é possível sentir ali em cima, junto dos carros e do comércio – diz Park, apontando para o trânsito barulhento.
Embora a nova estética tenha melhorado consideravelmente a cidade, a aprovação da obra não é unânime entre os coreanos, diz a jornalista Sun Ji, 27 anos, que atua no setor de turismo.
– O fato de o rio ter se tornado artificial desagradou a muita gente, tornando-o uma "obra de fachada" e comprometendo características do ambiente natural. A velocidade da reforma atrapalhou. Não deu tempo de consultar todos os especialistas necessários. Tudo foi feito rapidamente para servir de plataforma política – critica.
Sun recorda que, após a remoção do asfalto, houve uma escavação arqueológica, e uma série de objetos foi encontrada – relíquias que tinham a ver com a história pregressa do arroio.
– Porém, o serviço de identificação geológica levaria tempo, e com o prazo curto, os arqueólogos não puderam trabalhar, e grande parte dos achados foi soterrada.
O impacto da revitalização
Apesar de ter causado desconforto em ambientalistas, a obra rapidamente caiu nas graças da população, tornando-se referência mundial em projetos de inovação urbana.
Responsável pela sua implantação, o professor de Economia da Universidade Nacional de Seul In-Keun Lee trabalhou para o governo sul-coreano por quase 30 anos. Envolvido em grandes reformas de planejamento, como a implantação do metrô, o engenheiro virou porta-voz da reforma e ganhou várias distinções em sua carreira pelo brilhantismo apresentado em soluções urbanas conciliando economia, meio ambiente e qualidade de vida. Durante sua fala em um encontro mundial de urbanismo, ele destacou que a solução encontrada para sanear o arroio poluído em Seul foi fundamental para resolver outros problemas, como segurança e recuperação da história e da cultura local. Também ajudou a revitalizar o centro da cidade e a proporcionar um desenvolvimento regional equilibrado.
Lee constatou que, além de criar espaços culturais e marcos artísticos, o projeto teve uma série de impactos positivos sobre a cidade, como a melhora da qualidade da água e do ar, a redução no nível de ruído e alívio do efeito da ilha de calor, por meio de um corredor de vento. A economia também cresceu, objetivo alcançado com a criação de incentivos, taxas e estratégias direcionadas aos antigos ambulantes.
A revitalização trouxe diversas melhorias para a fauna e flora local e para o aumento da biodiversidade no entorno. Por consequência da obra, o número de veículos em Seul diminuiu 2,3%, e o número de usuários por ônibus aumentou 1,4%, enquanto o de metrô cresceu 4,3%, o que certamente contribuiu positivamente para a atmosfera local. Dados como estes estão expostos em um museu situado às margens do arroio. De lá, pode-se ver um resquício da estrutura do antigo viaduto, deixado para recordar o passado. Também se encontram vídeos, painéis e maquetes que ilustram o presente e projetam o futuro do curso d'água.
Os obstáculos de Porto Alegre
A solução sul-coreana é conhecida pelos gestores públicos da Capital. Há cinco anos, um grupo de trabalho formado por mais de 80 pessoas, entre pesquisadores da UFRGS e da PUCRS e funcionários das prefeituras de Porto Alegre e Viamão, reuniu-se para estudar a ideia. A proposta não decolou. Faltaram recurso e vontade política, segundo os participantes do GT. Para o vice-diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, Carlos André Bulhões Mendes, embora a água seja a mesma em qualquer lugar do planeta, as condições administrativas, financeiras e socioculturais são bem diferentes no Brasil e na Coreia do Sul:
– O que funciona lá pode não funcionar aqui, tendo em vista que nossa prefeitura tem outra forma de gestão. Isso não quer dizer que a gente não possa utilizar Seul como inspiração de um outro mundo possível. Nos motiva a buscar soluções próprias.
Bulhões lembra que, entre os 27 arroios de Porto Alegre, vários estão concretados. Cita como exemplo a Bacia do Arroio da Areia, localizada próximo ao Colégio Anchieta.
– Muita gente nem desconfia que ali temos uma nascente. Para você ver como estamos desconectados com a natureza – reflete.
Responsável pelo grupo que realiza educação ambiental nas nascentes dos arroios, Alex Lamas, chefe da equipe de Vigilância da Qualidade da Água (órgão da Coordenadoria-geral de Vigilância em Saúde, da prefeitura), diz conhecer o exemplo de Seul e afirma que a estratégia em Porto Alegre deve ser outra. Segundo ele, é preciso tratar todos os esgotos e regularizar as ligações das residências, priorizando a segurança e a qualidade do abastecimento hídrico. Lazer e outros usos viriam depois.
– É preciso falar da importância do cidadão e das indústrias fazerem as ligações corretamente. Não pode só afastar o esgoto. Tudo que a gente faz em maior ou menor grau tem impacto nos arroios – sustenta Lamas.
O GT entre prefeituras e universidades foi precedido por uma comitiva do governo do Estado, que visitou Seul em 2011. Por quatro dias, o então governador Tarso Genro explorou as margens do arroio a pé e ficou impressionado. Em Porto Alegre, ele enxerga o Dilúvio da janela de seu escritório, mas teme estar andando de bengala quando o arroio gaúcho chegar aos moldes coreanos.
– Para acontecer uma reforma no Dilúvio, seria preciso buscar um financiamento internacional, e seria algo para mais de uma gestão. Ela estaria na agenda do dia, mas diante da crise, não seria prioridade – diz Tarso.
Conforme mostrou reportagem sobre o tema publicada há dois anos em ZH, um dos obstáculos é o fato de o arroio ser um "problema de todos e de ninguém". Sua gestão é dividida entre várias secretarias e envolve legislações específicas sobre esgoto, limpeza urbana, abastecimento, qualidade da água e moradia, entre outros aspectos.
– Funcionaria melhor se a gestão do arroio fosse única – opina Alex Lamas, da Vigilância da Qualidade da Água.
Tentar devolver o significado dos arroios à população seria uma forma de preservá-los. Segundo Lamas, é comum, ao conversar com as pessoas que moram nas nascentes do arroio, ouvi-las dizer que no passado, nadavam, faziam churrasco e cultos religiosos.
– Hoje não fazem mais, por causa da poluição, da degradação, da violência. Quando as pessoas usam os rios, passam a cuidar mais deles. É preciso trazê-las de volta a esses espaços – afirma.
Fazer esse resgate em tempos de crise na economia e na segurança é um desafio grande para cidades como Porto Alegre, alerta Luís Humberto Villwock, atual coordenador do Crialab da PUCRS e um dos integrantes da comitiva gaúcha que visitou Seul. Para ele, é como se estivéssemos falando de dois planetas diferentes e, com tantas demandas urgentes, uma preocupação desta natureza parece "assunto de filhinho de papai".
– Um povo que está preocupado em chegar em casa sem levar tiro não pode se dar ao luxo de preocupar-se com isso. Mas vou fazer uma analogia: se o João Dória (prefeito eleito em São Paulo) fizesse isso para salvar o Tietê, ele vira presidente da República na eleição seguinte.