Já houve quem tenha dito que os historiadores são profetas com o olhar voltado para o passado. A frase faz todo sentido pois a melhor forma de interpretar o presente – e projetar, quase prever, o futuro – é sabendo como viemos parar aqui, nesse ponto em que estamos. Por isso, pode-se dizer que o estudo da história é atividade dupla face: cola o presente e o conecta ao mesmo tempo com o que já passou e com o que está por vir. Mas, até onde sei, ninguém propôs que o deus Janus fosse o patrono dos historiadores. Fica aqui a sugestão.
Janus era uma das divindades do panteão romano, embora alguns achem que advém da mitologia etrusca, anterior à Roma. Era um deus duas caras – mas isso não quer dizer que fosse ambíguo, dúbio ou de opiniões cambiantes. Nada disso. Janus apenas era bifronte: um de seus rostos estava voltado para frente, para o futuro; o outro, olhava para trás, atento ao que já havia acontecido. Ele era o senhor absoluto dos inícios e dos fins – e como tudo que tem começo, um dia acaba, Janus controlava os processos deflagrados por Cronos, deus do tempo.
Janus, por isso, era o porteiro celestial: tudo que se abria e tudo que se fechava estava sob seu comando. As portas de seu templo abriam-se em tempos de guerra e eram fechadas nos períodos de paz. Sendo o Império Romano, suponho que deviam viver escancaradas.
Janus entrou na sua vida, e na minha, em 46 a.C. – meio século antes do Natal. Foi quando Júlio Cesar modificou o calendário e o sétimo mês (setembro), o oitavo (outubro), o nono (novembro) e o décimo (dezembro) saltaram duas casas com a entrada em cena de Januarius, o mês de Janus, e Februarius, mês de Fébruo, o deus da morte e da purificação. Mas deixemos Fébruo para o mês que vem, e sigamos com Janus. Afinal, numa má interpretação da sua natureza, certos sacerdotes espalharam fake news de que uma das faces de Janus dizia a verdade e a outra mentia. Talvez por isso, ao criar o mês de janeiro, Júlio Cesar tenha decidido que esse seria o mês da eleição dos senadores e o início do ano político em Roma.
Passados 2.067 anos, Janus acaba desembarcar no Brasil para celebrar o advento de mais um mês dedicado a si. Mas não se preocupe: ele já se vacinou em algum lugar civilizado. Então, ele olha para trás e o que vê? Um mau militar, expulso do Exército, que vira político do baixo clero, estabelece holding familiar que vive da rachadinha, premia milicianos, defende o uso de armas e odeia artes, ciência e meio ambiente, mas ainda assim chega ao poder. Aí, olha para frente e... suspira, fechando as portas de seu templo antes mesmo do raiar do Ano-Novo.
Se bem que para prever que ia dar no que deu, não era preciso ser deus, nem historiador, nem profeta. E nem ter duas caras, né? Bastavam dois neurônios.