Os tempos andam turbulentos e espinhosos, os ânimos estão exaltados e as “redes”, bem as “redes”, mais do que meramente desprezíveis, seguem repugnantes como sempre. Assim, dado o climão reinante, decidi falar de flores. Mas não estou convicto de que tenha tomado a decisão correta.
Pensei em falar em flores de guapuruvu. Elas flutuam em cachos densos e eretos, de um amarelo solar que se espelha e se espalha pela vasta copa da árvore, feito uma supernova exalando seu último suspiro. O guapuruvu floresce em novembro, anunciando o verão. Mas desisti de falar dessa flor, para não lembrar do guapuruvu há pouco mutilado em Porto Alegre.
Quando os guapuruvus florescem, os jacarandás, invejosos, os imitam – e explodem numa erupção violácea. São flores tubulares, agrupadas em cachos pendentes, e cuja tonalidade transita do roxo ao lilás, do purpúreo ao violeta com tal formosura, que a árvore não é chamada só de jacarandá: é o jacarandá-mimoso. Mas desisti de falar dessa flor para não lembrar que não pude vê-las no chão da Praça da Alfândega, misturadas ao amarelo das flores de guapuruvu, no tapete multicor que anuncia a Feira do Livro. Simplesmente porque não teve Feira do Livro.
Pensei em falar nas hortênsias. Buquês azul-celeste, recobrindo a totalidade do arbusto de onde brotam, harmoniosos e exuberantes, à sombra das araucárias sem flor, nos verões de minha infância na diáfana serra gaúcha. Mas desisti de falar dessa flor para não lembrar das aglomerações irresponsáveis na Rua Coberta de Gramado, nem pensar no plano diretor que assombra a cidade onde fui feliz.
Pensei em falar na margarida, a flor dos hippies – “paz e amor, bicho” –, uma galeria de pétalas brancas dispostas ao redor da auréola da coroa solar, iridescente feito átomo; uma viagem lisérgica em si. Mas desisti de falar dessa flor: vá que, no bem me quer, mal me quer da vida, eu acabasse preterido. Sem contar as tantas e tamanhas derrotas da luta pacifista, quando cabeludos e cabeludas, como eu, acreditavam nas flores vencendo o canhão.
Pensei em falar nos girassóis, tais e quais cantados por William Blake. Mas desisti de falar dessa flor para não lembrar do girassol recoberto de fuligem, de serragem e de ferrugem junto ao esqueleto de uma locomotiva esquálida, no poema de Allen Ginsberg. Então, pensei em falar nas rosas, mas as rosas não falam e desisti de falar dessa flor para não lembrar da rosa de Hiroshima: a rosa hereditária, a rosa radioativa, estúpida e inválida, a rosa com cirrose; a antirrosa atômica, sem cor, sem perfume, sem nada.
Portanto, desisti. Não vou falar de flores. Mas por lástima esgotou-se meu tempo, meu saco e meu espaço e assim não poderei falar dos espinhos, como estaria em maior sintonia com os espinhosos tempos que vivemos.