Todo o escritor que se preze tem um conto de Natal. Prezado ou não, já fiz o meu – que, aliás, foi publicado aqui, na arquitetura dessa coluna. Para não me arriscar de novo, vou seguir à risca o roteiro de um outro conto de Natal que, ao mesmo tempo, é um fidedigno conto de piratas, que reconto sem aumentar ponto, mesmo que talvez te deixe um pouco tonto.
Era a madrugada de 24 para 25 de dezembro de 1591, e era missa do Galo. O bom povo de Santos (SP), se achava reunido (naquele tempo as aglomerações estavam liberadas) na igreja da Misericórdia, no coração da vila, erguendo mãos e corações para os céus, saudando a chegada do ungido quando... as portas foram arrombadas com um estalo e um estrondo e um bando de piratas ingleses adentrou, ululante, ao templo, matando vários e prendendo os outros.
“Piratas” foi como os luso-brasileiros – aprisionados, vilipendiados, dilapidados e sequestrados em sua própria cidade – os chamaram. Porque os ingleses se autointitulavam “corsários”. Você sabe a diferença, pois não? Corsário era um pirata que, por andar munido de uma “carta de corso”, julgava agir dentro da lei: um ladrão do mar, autorizado por sua Coroa a atacar uma Coroa adversária. No caso, a rainha Elizabeth I havia autorizado Thomas Cavendish, cavaleiro da Casa Real, a atacar o maior rival dela, o rei Filipe II, da Espanha.
Mas o que o Brasil tinha a ver com isso? Ora, tudo. De 1580 a 1640, sob o eufemismo “União Ibérica”, Portugal e suas colônias foram absorvidos pela Espanha – ganhando “de presente” (não sei de Natal) todos os inimigos que os castelhanos tinham por esse mundão sem porteira. Thomas Cavendish era uma figura notável. Nascido em berço esplêndido, dilapidara toda herança paterna em excessos e luxúrias. Então, fez-se ao mar. Virou o terceiro homem a dar a volta ao mundo, feito que completou em 1586. Então, em 1590 ele zarpou de novo – dessa vez para saquear o Brasil.
Mas tinha que ser justo no Natal? você há estar se perguntando. Ora, claro que não. O que houve naquela noite em Santos – noite que durou dois meses, aliás – foi não apenas um confronto entre ingleses e luso-brasileiros (por tabela espanhóis) e nem só entre católicos e protestantes: foi também um choque de calendários. Portugal e Espanha já haviam adotado o calendário gregoriano, com as mudanças feitas pelo papa Gregório XIII em 1582. Os ingleses – que sempre gostaram de dirigir pela mão inglesa – ainda seguiam o defasado calendário juliano (só aceitaram o óbvio em 1752). Então, os vorazes súditos da dita Rainha Virgem ainda estavam na madrugada 15 de dezembro de 1591.
Que culpa eles tiveram se, imbuído do mais puro espírito natalino, o bom povo de Santos estava todo na igreja sem supor que, feito o peru, fosse morrer de véspera?