Despertei ao som de tiros. Eles estavam sendo disparados, soube logo a seguir, por fuzis “ponto 30, ponto 50 e, uau, cara, o bagulho tá doido hoje, até um 7.62”. Mas não foi o tiroteio que me acordou: embora ele estivesse espocando no telejornal matinal, eu já estava de pé, metido nas pantufas com meu monograma bordado, à espera do ponto exato dos ovos pouché e do croissant com geleia de laranjas de Sevilha. Ocorre que, ao escutar o zunir das balas, tive uma espécie de satori. “Satori”, você sabe, é o “súbito despertar”: aquele instante em que se rasga o véu de Maya (esse manto de ilusões que, conforme o budismo, oblitera a visão das coisas como elas de fato são) e aí tudo se desnuda e se desvenda.
Sim, tive um satori, só que às avessas. E despertei em meio ao pesadelo brasileiro.
Foi um sonho ruim, real e genuinamente nacional, passado num microcosmo do Brasil pós-moderno: a velha zona oeste do Rio de Janeiro, cuja coroa é a Barra da Tijuca e os espinhos são os demais bairros da região, Jacarepaguá, Bangu, Santa Cruz e Guaratiba. O índice de IDH da Barra é 0,959 e quem nasce lá tem expectativa de vida de 77.91 anos. Já quem veio ao mundo na vizinha Santa Cruz, onde o IDH não passa de 0,742, vive, em média, até os 65,52.
Santa Cruz era a imensa propriedade rural dos jesuítas, a fazenda onde seus escravos (claro, os tinham escravos) plantavam cana e criavam gado. A partir de 1573, o empreendimento foi se tornando o maior complexo agropastoril do Brasil. O agro é pop, sabe como é. Com a expulsão dos jesuítas, em 1759, tudinho passou para as mãos da Coroa. D. Pedro I foi criado lá, na roça, e o coração de Santos Dumont está ali, numa urna. O lugar virou um caos suburbano de loteamentos ilegais, música estridente, mangues aterrados, lagoas podres, sem lei nem ordem – exceto, é claro, a lei do silêncio e a ordem para matar impostas por traficantes e por milicianos.
Em frente, fica o brega chique da Barra, o fuck ostentação, a estátua da Liberdade de pés de gesso, as academias envidraçadas e os condomínios onde moram alguns traficantes e certos milicianos bem sucedidos, vizinhos do presidente que se dá mais com uns do que com outros. E, é claro, mais mangues aterrados, lagoas pobres e loteamentos ilegais – só que esses não foram feitos pela milícia mas por empreiteiras que pagam propina.
O tiroteio que pipocou no meu desjejum não envolvia os homens da lei – até porque esses não têm armas tão potentes. Foi travado entre milicianos e traficantes, uma disputa entre os donos da zona. Se fosse pego nesse fogo cruzado e, sob a mira de um fuzil 7.62, tivesse que escolher um lado, devo confessar: prefiro os trafi, bró. Eles tem andado em melhor companhia.