Domingo passado, dormia eu sossegadamente em meu château, metido em pijamas de cetim, sob lençóis de algodão egípcio, quando, por volta das 9 horas da manhã (equivalente às seis da matina, em se tratando do domingão), fui despertado de meu sono da beleza por gritos amplificados de “Liberdade, liberdade”. Não achei que fosse o dia, nem o horário, mais apropriado para emitir tal clamor. Mas como a luta pela liberdade, liberdade sempre me foi cara, não me irritei – a princípio. Levantei-me, calcei as pantufas e, antes mesmo de aplicar meus cremes faciais ou sorver o suco de cranberry, abri a porta e a janela para ver o sol em raios fúlgidos brilhar no céu da pátria naquele instante.
Não precisei nem dois minutos para perceber que tipo de liberdade estava sendo alardeada pelo carro de som e ecoada por um punhado de gatos pingados aglomerados de verde e amarelo no meu amado Parcão. A liberdade para usar cloroquina, a liberdade para negar a ciência, a liberdade para sair de casa quando ainda é hora de ficar, a liberdade para não usar máscara, a não ser à luz de tochas. Liberdade para Queiroz. Liberdade para Sara Winter. Liberdade para Weintraub. Liberdade para milicianos. A liberdade “de expressão” para pedir o fechamento do Congresso, a destituição do STF, a censura à imprensa. A liberdade para manipular ou esconder dados da Covid-19, conspurcar a Lei de Acesso à Informação, publicar fake news no Diário Oficial. Liberdade para não ter ministro da Saúde, nem ministro da Educação, nem ministério da Cultura. Liberdade para ensinar nas escolas que não houve golpe em 1964 e que a escravidão não foi tão ruim. Liberdade para atacar a liberdade.
Na minha opinião – que, aliás, sou pago para dar (ao contrário de quem a dá de graça nas “redes”) –, a manifestação não foi só ruidosa e imprópria: foi desprezível. E tanto mais pois que levada a cabo no solo sagrado do velho “matto Mostardeiro”, onde se erguia o glorioso Fortim da Baixada, em área que pertenceu a Laura Mostardeiro. Dona Laura, imortalizada na rua onde moro, era filha e neta de baianas. Casada com Hemetério Mostardeiro, dava festas mistas, até então inéditas na cidade, nas quais negros conviveram pela primeira vez com a elite branca em Porto Alegre. Acho que ela sentiria o mesmo asco que eu desses que agora profanam a palavra “liberdade”. Ainda mais se fosse despertada de seu sono da beleza no domingo, após um dos saraus que agitavam seu casarão, erguido na esquina com a Castro Alves, do lado da dita Colônia Africana, mirando o futuro Parcão lá do alto, sem saber que algum dia tentariam jogá-lo tão baixo, quase arrastando junto o libertário Goethe.