Antes da Revolução Farroupilha, o gaúcho agonizava. Fruto de ventre indígena e pai desconhecido, nascido numa terra de ninguém, sem lei nem rei, vivendo dentro de sua camisa, debaixo de seu chapéu e em cima de seu cavalo, o gaúcho havia sido capaz de forjar a própria lenda – mas acabou fulminado por ela. Tão logo o pampa e o gado passaram a ter dono e cerca, o gaúcho virou mero "peão" ("aquele que anda a pé"). O esforço dos terratenentes em suprimir o estilo de vida indômito do gaúcho foi coroado pela sua transformação em mão de obra barata nas charqueadas.
Para os latifundiários, gaúcho bom era gaúcho a pé.
Só que então, por obra da mesma elite rural que quase o extinguira, o gaúcho renasceu, em carne, osso e nervos de aço. Mas os líderes da revolta farroupilha não estavam aos farrapos: eram estancieiros e charqueadores, donos de muitas terras, muito gado e muitos peões. Eles incorporaram a mística libertária do gaúcho para lutar em causa própria. Seu combate mobilizou a paixão e fez despertar a lealdade dos homens do campo, esfarrapados ou não – e que sempre cultuaram a guerra e nunca refutavam uma boa peleia.
A Guerra dos Farrapos foi uma luta contra o centralismo rapinante do império, que jamais havia se importado com o que se passava longe demais das capitais. Para mostrar que era preciso uma reforma tributária e que os impostos sobre o charque estavam salgados demais, a elite campesina foi à luta. Com ela, foram seus gaudérios – pardos, negros e brancos. Por livre e espontânea vontade – ou à força.
Embora todos preferissem salgar a própria carne no suor das batalhas a tingi-la com sangue nas "fábricas de desmontar boi" que eram as charqueadas, onde ganhavam a carne sua de cada dia.
Mesmo travada em nome de um ideal igualitário, no campo de batalha, a guerra foi como todas: suja e sórdida. E, como sempre, sua primeira vítima foi a verdade. Ao fim e ao cabo, a Revolução Farroupilha faria o Brasil e o próprio Rio Grande redescobrirem que o gaúcho tinha sangue nas veias e ossos duros de roer. Mas seus dias estavam contados – e eram em menor número do que as farpas do arame que cedo riscaria os campos. E, assim, finda a revolução que nada revolucionou, o gaúcho voltou a ser mera sombra numa correnteza de relvas, um eco no entardecer dourado do pampa, reflexo fugaz num arroio entre as coxilhas. A pé, e a pão e água, comendo o charque que o diabo salgou.
E deixando o filé para aqueles que nunca largaram o osso.