Sou um sobrevivente nato. Embora só tenha aprendido a amarrar os cadarços depois dos 12 anos e a andar de bicicleta com quase 18, além de sempre ter tido certa dificuldade na hora de bater palminhas e até hoje às vezes enfiar o sorvete na testa, decidi, e já em tenra idade, que seria um intrépido aventureiro, um andarilho decidido, estradeiro convicto. Por isso, fui forçado a desenvolver um método especial para sobreviver a mim mesmo e persistir sob as mais rígidas condições – em geral aquelas que eu próprio havia provocado. A fórmula consistia em apelar para o mais radical despojamento: manter as mãos e os bolsos vazios e, sempre que possível, não fazer nada. A não ser, é claro, falar.
E, com o poder da lábia, obter comida, teto e transporte.
Não se pode dizer que a fórmula tenha fracassado, pois em 1979 – e lá se vão espantosos 40 anos – vim de carona de Nova York a Porto Alegre, dormindo sob as estrelas, vivendo sob meu chapéu e dentro de minhas calças – tendo só meu saco de dormir, simultaneamente casa e casulo. Mas o método só funcionava quando eu estava sozinho. Sempre que me juntei a outros estradeiros, ele falhou miseravelmente.
Como certa feita na Costa Rica.
Havíamos caminhado por oito horas rumo ao coração selvagem de um parque nacional, através de um vale florestado por entre os vulcões. Exceto frutas silvestres, nada havia para comer num raio de quilômetros. Até um canadense másculo e versado em vida ao ar livre fisgar uma espécie de salmão no rio que rugia junto ao lugar onde, exaustos, tínhamos acampado. Depois que todos, menos eu (éramos quatro), já haviam dado suas contribuições para o bem-estar comum, o canadense viril olhou para mim e disse: “Ei, você, que não fez nada, vá lavar o peixe”. Obedeci. Mal coloquei o bicho na correnteza, ele – vupt – escapuliu-me das mãos como se tivesse recobrado a vida e... sumiu para sempre. Voltei ao acampamento, mas lá minha pregação sobre os benefícios do jejum não foi bem recebida.
Noutra ocasião, e com outras vítimas, na remota Ilha das Peças, na Baía de Paranaguá (PR), alguém teve a má ideia de olhar para mim e dizer: “Ei, você, que não fez nada, vá salgar o peixe”. Estávamos numa cabana caindo aos pedaços, mas nela havia cozinha. Dirigi-me até lá, vi o pote do sal e temperei o peixe. Ao dar a posta para o cozinheiro, ele disse: “Estranho, nunca vi sal fazer espuma...”. Acabamos comendo pão, pois ninguém curtiu o peixe com... saponáceo.
Você vai entender por que estou feliz com o desembargador Kássio Marques, do TRF1. Anteontem, ele liberou o STF para comprar, com meu dinheiro, lagosta, bacalhau e vinhos para seus lautos bufês. Quero me oferecer para lavar e preparar os peixes e frutos do mar que Vossas Excrescências irão saborear após a árdua labuta legal. Já aviso que minhas especialidades são salmão com salmonela, lagosta ao exterminador e peixe-espada às vinhas da ira. Uma delícia.