O profundo impacto que os indígenas brasileiros provocaram nos viajantes europeus dos séculos 16 e 17, ao serem vistos – desnudos, depilados, cantando, dançando e devorando-se uns aos outros – pelas matas e praias do Novo Mundo, foi largamente amplificado pelo fato de eles ostentarem seus formosos corpos pintados com largas listras horizontais vermelhas e negras. O rubro, que remetia ao sangue, provinha do urucum – fruta em forma de cápsula, com a casca profusamente armada de espinhos. Já o preto, escuro como a noite dos tempos, era obtido a partir do sumo do jenipapo. Com o rosto, o tronco e os membros listrados daquela forma, os dentes luzindo em contrastante alvura e os cabelos negros cortados em tonsura, os "brasílicos" assomaram-se ante o olhar estrangeiro de forma simultaneamente galante e assombrosa.
Tenho cá para mim que, ao adotar o vermelho e o negro como as cores de seu uniforme e de sua bandeira, o Clube de Regatas do Flamengo acabou por acessar um espectro, uma memória, uma reminiscência ao mesmo tempo arquetípica e espantosa no imaginário brasileiro. E por isso mesmo tornou-se – no mínimo ao longo das décadas de 1930, 40 e 50 – uma paixão nacional, quando menos do Rio de Janeiro para cima (embora Santa Catarina e partes do Paraná possam ser incluídas no rol do fervor rubro-negro). A própria ressonância da palavra Flamengo – a doçura sonora do "fla", seguido de duas sílabas tão malemolentes ("mengo") – talvez também tenha algo a ver com essa magia. Sem falar, é claro, no temor reverencial que o termo sempre despertou na psique luso-brasileira.
Sim, o gentílico "flamengo" era empregado tanto pelos portugueses quanto pelos brasileiros para designar holandeses, belgas, batavos, neerlandeses e demais habitantes dos Países Baixos, as Flandres. Flamengo, aliás, provém de Flandres – palavra que significa "alagadiço", quando não "enchente". E a praia do Flamengo, onde o dito clube de regatas nasceu, foi assim batizada porque o holandês (ou "flamengo") Olivier van Noort tentou invadir o Rio em abril de 1699 (dois meses após o Carnaval...) e foi ali repelido. O Clube de Regatas do Flamengo foi fundado naquela mesma praia, em 15 de novembro de 1895 – talvez não por acaso depois que um barco com oito remadores ali naufragou.
Mesmo nascido de um soçobro (ou por conta disso), o Flamengo se tornou um símbolo, um clube, um time escancaradamente brasileiro: é a agremiação que tem a maior e mais animada torcida do mundo. O Flamengo é exuberante, colorido, dinâmico, alegre – e também descaradamente hedonista, descuidado, arrogante e prepotente. O Flamengo é a cara do Brasil: reúne tudo o que o país tem de bom e muito do que ele tem de péssimo.
O Flamengo merece perdão instantâneo? Estou louco ou a tal hashtag #forçaFlamengo traz em si um quê de cumplicidade? Acho que "não força, Flamengo" estaria mais de acordo com as dimensões duma tragédia bem similar a um crime.