Amo os Estados Unidos. Sempre amei.
Os homens, músicas, filmes e livros que me fizeram ser quem sou vieram quase todos de lá. Meus maiores ídolos são norte-americanos: Thoreau, John Muir e Jack Kerouac. Eles botaram meu pé na estrada e a trilha que segui foi a sonora, cantada por Neil Young (ok, um canadense, mas nem ele se lembra), The Band e Bruce Springsteen. Minha vida virou cena de cinema por causa de John Huston, Sam Peckinpah, Don Siegel e até o Clint.
O caminho das letras, eu o palmilhei junto – e graças – a Melville, Jack London e Stevenson (sim, escocês, mas com a América no coração). Walt Whitman, Emily Dickinson e Allen Ginsberg? Eles me fizeram crer que eu podia versejar. E mesmo que nenhum deles existisse, a pedra angular da minha vida, desde os 16 anos, é Bob Dylan.
Odeio os Estados Unidos. Sempre odiei. Nunca dei bola para as baboseiras do idiota latino-americano ou sangrei pelas tais veias abertas, nem lutei contra o imperialismo ianque. Era – e é – um ódio caseiro mesmo: Nixon, Reagan, Bush pai e Bush filho, eleitos nas minhas barbas! Sem falar na Ku Klux Klan, no complexo militar-industrial, na obsessão pelas armas, nos caipiras do Sul. No asfalto, no petróleo, no automóvel. Na CIA, no FBI; em Hoover e McCarthy.
Sempre quis morar nos Estados Unidos. Em Berkeley, em 1968. Em San Francisco, um ano antes. Em Nova York, na década de 1950, ao som do bebop. Em Nova Orleans, nos anos 1920, ouvindo jazz. Em Concord, Massachusetts, em 1865, com Thoreau, no lago de Walden, vizinho de Emerson, Hawthorne e Mark Twain. Ah, eu queria morar em Santa Fé, com Georgia O'Keeffe. Ou em Eugene, no Oregon, para dar uma banda no Magic Bus, com Ken Kesey.
Eu jamais moraria nos Estados Unidos. Imagina acordar e dar de cara com uns mórmons, ou com Hells Angels, ou com yuppies, ou gente de Wall Street, ou militares de West Point, ou aqueles evangélicos da televisão, ou policiais assassinos ou marines de cabelo escovinha? Morar em Dallas, morar no Kansas, morar no Mississipi? Oh, não.
Os EUA são regidos por Gêmeos (4 de julho de 1776). Os EUA são o médico e o monstro: curam e matam. Os EUA melhoraram muito o mundo e pioraram o mundo. Os EUA preservam e os EUA destroem. Mas o fato é que agora o país dos "pais fundadores", de Benjamin Franklin, Washington e Lincoln, os EUA de Obama, Clinton e Carter (os presidentes fãs de Dylan, que fumaram e tragaram) é governado por um sujeito patético e mesquinho. E ele fraudou as eleições, conspurcando a maior democracia do mundo.
Os Estados Unidos são a pátria do Facebook, uma das invenções mais repugnantes surgidas na face da Terra – a revista Caras da era eletrônica e o berço das fake news, a serviço de Putin. Ah, eu odeio os Estados Unidos. Só que, nesta semana, a capa dos melhores jornais americanos foi Marielle Franco – ali chamada de "heroína global". Ah, eu amo, sempre amarei, os Estados Unidos da América.