Desde o primeiro dia, a trilha sonora do Brasil soou polifônica, polimórfica, ritualística e, é claro, antropofágica. Tanto é que enquanto na proa, sob a cruz estampada no velame, um certo frei Maffeu modulava no órgão sua melodia sacra – enchendo de ânimo os marujos da frota de Cabral –, na praia, sob o dossel da floresta, os tupis se punham a chacoalhar seus maracás, balançando os guizos no compasso da criação. Mais tarde, um grumete dedilhou a gaita e Bartolomeu Dias deu um "salto real" nas areias alvas de Porto Seguro, surpreendendo a indiada. Mas não tanto quanto os nativos iriam estarrecer os portugueses tão logo soprassem suas flautas: elas eram feitas dos ossos dos inimigos que eles haviam devorado...
Foi apenas uma amostra rumorosa do que estava por vir: o nascimento de uma nação destinada a se tornar uma das mais musicais do mundo, na qual todos os cantos, todas as vozes e todos os ritmos afinaram-se para fazer com que o planeta, mais do que simplesmente girar, bailasse... Mas é claro que, naquele alvorecer, enquanto lusos e tupiniquins cantavam e dançavam juntos ao som do mar e à luz do céu profundo, como diz a carta de Caminha, ainda faltava o ingrediente primordial: os ritmos, as danças e os cânticos que viriam da África. Quando eles chegaram, em meio às indizíveis infâmias do tráfico de escravos, a alquimia sonora se completou. E o Brasil começou a forjar a música que ajudaria o mundo a não ser tão ruim da cabeça e doente do pé.
Mas ainda seria preciso esperar três séculos para que o lundu africano e a modinha portuguesa concretizassem seu flerte, misturando a casa-grande e a senzala para dar à luz o bendito fruto do maxixe. Consubstanciou-se assim o mistério do samba: o santo batuque, a dança lasciva, o ritmo hipnótico, a pulsação do bumbo na mão dos bambas, umbigo contra umbigo, batendo na cadência do coração. Um som tão retumbante, que, após anos na ilegalidade, iria virar, em meio ao período mais repressivo da Era Vargas, a trilha oficial do Brasil: a música que embala, na Sapucaí, "o maior espetáculo da Terra".
Está tudo muito bom, tudo muito bem, e se trata de uma linda trilha sonora. Eu já a estudei um tanto. Tanto que, recentemente, editei o livro de Nelson Motta 101 Canções que Tocaram o Brasil (cuja recomendação aproveito para deixar). Mas o fato é que tenho uma confissão a fazer. Ocorre que, no Carnaval de 1962, minha mãe decidiu fantasiar meu irmão de Tarzan e a mim de cupido. Ambos usávamos tanga e portávamos flechas. A questão é que, enquanto a fantasia dele se impunha definitivamente viril, a minha era, no máximo, romântica. No ano seguinte, ele foi de Eder Jofre. E eu, de galo. Só que, com aquele penacho abanando no traseiro e a crista flácida que jamais ficou ereta, não havia como não achar que eu estava ali de galinha. Com muita boa vontade, um frango.
Portanto, não me leve a mal, mas eu odeio Carnaval.