–Sessenta e quatro mil, novecentos e vinte e oito!
Foram essas, conta a lenda, as últimas palavras balbuciadas pelo espantoso Neal Cassady. Quem escutou o enigmático sussurro numérico foi um grupo de índios Tahaumara que passava ao lado da linha férrea, no ardente deserto do norte do México. Era 4 de fevereiro de 1968 e os nativos, é claro, não alcançaram o significado dos algarismos que, junto com o último suspiro, derramaram-se da boca seca do gringo coberto de poeira.
Se vivesse quatro dias mais, Neal Cassady faria 42 anos. Mas ninguém pode dizer que foi pego de surpresa pela morte anunciada – e, menos ainda, que ela não tenha sido coerente com a vida do falecido. Cassady morreu drogado, sozinho, (relativamente) jovem, no (auto-)exílio e à beira do caminho. Sua morte configurou assim uma macabra profecia: ao longo da longa e tortuosa estrada de excessos dos anos 1960, logo seria fácil avistar os despojos de incautos que deram tudo para emular a vida de Neal. Mas que só foram capazes de imitá-lo na morte.
O nobre selvagem da geração beat, o frenético personagem de On the Road, o "herói secreto" do poema Howl, de Ginsberg, o enfant terrible por excelência, o vagabundo celestial, o sacrossanto hipster, o pai dos hippies, o patrono das armas da delinquência juvenil e da rebeldia sem causa, o motorista sem limites do Magic Bus de Ken Kesey (retratado por Tom Wolfe em O Teste Ácido do Refresco Elétrico), Cassady foi um desses personagens maiores do que a vida.
Nascido em 8 de fevereiro de 1926, criado nos becos sem saída de Denver pelo pai alcoólatra, Neal passou a adolescência em reformatórios, escrevendo longas, loucas cartas. Tais cartas chegaram às mãos (e aos espíritos) de Ginsberg e Kerouac. E deflagraram uma revolução literária. Seu vertiginoso estilo parentético, a torrente verbal sem pontos ou vírgulas, desatolaram Kerouac do areal criativo onde ele se encontrava e o levaram a escrever o clássico Na Estrada – o livro que transformou Cassady em personagem imortal… e o matou como escritor. A vida do homem que Kerouac batizou de Dean Moriarty também inspirou Ginsberg a criar um dos mais fulgurantes e sombrios poemas dos tempos modernos, Uivo.
A fama tornou Neal prisioneiro da própria lenda. Mas ele foi capaz de incrementá-la ao partir com Ken Kesey (autor de Um Estranho no Ninho) numa vertiginosa viagem de ônibus e de ácido, através da América. O fim da linha, e das picadas, se deu naquela manhã de fevereiro de 1968: após ingerir colossais doses de pulque, Cassady partiu, doidão, duma cidadezinha no meio de nada até outra em lugar nenhum, dizendo que iria "contar quantos dormentes" havia na linha férrea.
– Sessenta e quatro mil, novecentos e vinte e oito! – foi o que os Tahaumara escutaram o gringo agonizante balbuciar, antes que a insolação e a desolação levassem Neal Cassady para brincar noutros campos do Senhor. Há exatos 50 anos, depois de amanhã.