No princípio, era a febre. Ancestral, assombrosa, letal: a febre amarela. Julgava-se que estivesse erradicada, mas, de repente, ela voltou. Com tudo. Em seguida, eclodiu a questão da vacina. A picada deveria ser, como havia quem exigisse, "obrigatória, feito o batismo para a Igreja"? Ou tal obrigatoriedade era o fim da picada, "o túmulo da liberdade"? O principal foco do contágio estava aí, mas convém não esquecer de outras moléstias fervilhando no coquetel de enfermidades: a carestia, o desemprego, a iniquidade das submoradias, o poder das gangues controlando os morros, os terrores e rancores da elite, a prepotência corrupta da polícia. O descompasso entre o Brasil real e o Brasil do palácio do governo.
Só podia dar no que deu: intervenção militar.
O Rio era um local muito primitivo, assolado por um mosquito, o Aedes aegypti, que transmitia a febre amarela, para a qual não havia vacina.
E tão logo foram autorizados – mais do que isso, conclamados – a sair dos quartéis, os milicos não perdoaram: subiram os morros, sem mandado ou provas; prenderam, bateram e arrebentaram. Tudo dentro da lei: lei de exceção, é claro, pois o governo convocou o conselho de segurança e obteve, no Congresso, a decretação do estado de sítio. Então, chegou a hora mais dramática, quase implausível: a hora em que os militares legalistas tiveram que enfrentar – e prender – os militares revoltosos. Sim, a situação saíra de tal forma de controle, que uma guarnição, instalada na Urca, em plena Zona Sul, se sublevou. O plano era derrubar o governo constitucional – acusado de "golpista" por ter decretado o estado de sítio – e tomar o poder. Difícil imaginar tamanho caos e tão grande subversão da ordem. Mas há fácil explicação: tudo isso ocorreu há muito, muito tempo (embora não no reino de tão, tão distante).
Foi no Rio de Janeiro. Mas, naquela época, o Rio era um local muito primitivo, assolado por um mosquito, o Aedes aegypti, que transmitia a febre amarela, para a qual não havia vacina. Vacina havia para a varíola, que também grassava por lá – mas essa picada, obrigatória, o povo não queria tomar. Não só o povo, diga-se: Ruy Barbosa e Olavo Bilac também se opuseram virulentamente a ela. Mas a capital não era apenas uma cidade febril: era também uma cidade partida, purgatório da beleza e do caos, onde os muito ricos tinham muito, tinham tudo, e muito pobres tinham muito pouco, tinham nada. A violência era tal, que até o Carnaval servia de pretexto para grupos armados saírem pelas ruas espancando foliões. Os morros estavam tomados por favelas e as favelas não eram caso de polícia, que lá ela não subia: eram caso de Exército, julgavam alguns.
Foi em novembro de 1904 – incontáveis 114 anos atrás. O episódio passou para a história com nome esdrúxulo: a Revolta da Vacina. Mas foi tão traumático, que a cidade, o país, o governo e até o povo aprenderam a lição e decidiram: isso nunca mais haverá de acontecer. Não conosco. Não aqui. E não faria sentido mesmo uma nação do porte do Brasil passar por isso tudo outra vez.