Porto Alegre amanheceu com o céu cor de laranja na sexta-feira. Um céu que Van Gogh gostaria de pintar. Há coisa de seis anos, depois de uma nevasca, a primeira nevasca da minha vida, vi a noite da Nova Inglaterra luzindo quase que no mesmo tom.
Quando digo nevasca, não me refiro a uns flocos de neve flutuando preguiçosamente, fazendo a gente ter vontade de cantar Noite Feliz. Não. Estou falando de tempestade de neve. O que eles chamam de blizzard.
Essa minha primeira blizzard foi assustadora. Os americanos são alarmistas. Uma semana antes, TVs, rádios e sites já anunciavam que aconteceria, pediam que tomássemos o máximo cuidado e passavam instruções: fiquem em casa, abasteçam a despensa, comprem cobertores e lanternas. Falavam muito nisso de lanternas. Alertavam que poderia faltar energia elétrica.
No dia em que ocorreria a blizzard, recebi uma ligação da Defesa Civil, repetindo as recomendações, encerrando com gravidade:
“Não se esqueça de comprar lanternas!”
A cidade inteira estava agitada, todo mundo correndo, apressado. A Marcinha foi fazer rancho no supermercado, eu fui pegar o Bernardo na escola e, depois, saímos a procurar as benditas lanternas. Quem disse que encontramos? Todas tinham sido vendidas. Por Thomas Edison, será que ficaríamos no escuro? Finalmente, depois de muito bater perna, achei três lanternas tipo caneta à venda numa famosa ferragem chamada True Value. Comprei-as sofregamente.
Nunca as usei.
Nos seis anos em que vivi em Boston, só uma vez faltou energia, durante 15 minutos, por causa de uma obra que estavam fazendo no prédio em que morava. Mas antes da blizzard eu não sabia disso, então fiquei bem contente com as minhas lanternas e orgulhoso de tê-las achado.
Os canais de previsão de tempo marcaram para o meio da tarde o começo da tempestade, e a tempestade obedeceu. O dia havia começado claro e foi se tornando opressivo, as nuvens se aproximando do solo com jeito de brabas. Depois do almoço, o céu estava lilás. A temperatura foi baixando. Baixando... Na hora aprazada, flocos de neve do tamanho de moedas de um real começaram a cair como folhas mortas, pousando devagar no chão, juntando-se uns aos outros. No começo da noite, se você saísse à rua, afundaria até os joelhos no colchão de neve fofa e branca.
Nós, eu, a Marcinha e o Bernardo, estávamos no calor da nossa casa, jantando e apreciando a paisagem lá fora. Podíamos fazer isso, porque o apartamento era dotado de uma enorme porta de vidro que se abria para a sacada. Não me cansava de olhar para aquele cenário bucólico, em que sobressaía um robusto carvalho que nos abraçava todos os dias. Sério, ele nos abraçava. Era como se nos protegesse. Desenvolvi uma inexplicável afeição por aquela árvore poderosa. No dia em que voltaríamos em definitivo para o Brasil, eu e o Bernardo fizemos questão de ir até o pé dela e abraçar seu tronco. Fiz isso, confesso, e quero fazer de novo, quando estiver lá outra vez.
Naquela noite, a neve foi embranquecendo os galhos nus do imenso carvalho e também os telhados das casas, o gramado da praça, o chão das ruas. A cidade ficou inteiramente branca. E então, quando a luz da Lua conseguiu furar a massa de nuvens, tudo, chão, casas, árvores e céu, tudo ficou cor de laranja. Foi tão lindo, que parei diante da porta envidraçada em silêncio, o peito cheio de alguma emoção entre a alegria de ver e o agradecimento por estar vendo, e aí falei. Sem deixar de mirar a rua, chamei a Marcinha e o Bernardo: “Olhem...” E eles olharam.
Lembrei dessa noite ao ver o amanhecer laranja de Porto Alegre na sexta-feira. Era bem cedo ainda, estava meio escuro. Até parecia noite, mas era o dia que vinha. Chovia uma chuva silenciosa e boa e foi bonito. Fiquei pensando que você pode encontrar belezas em qualquer parte do mundo, em qualquer pedaço de tempo. Basta querer ver. Torci para que meus irmãos porto-alegrenses estivessem contemplando o mesmo céu, mas calculei que a maioria da cidade continuasse sob os lençóis. Senti vontade de despertar a todos. Queria poder convocá-los a admirar aquela cena que Van Gogh pintaria. Queria poder pedir: “Olhem...” E eles olhariam.