Dentro de uma baia com um único ponto de iluminação, que em outros tempos serviu para acolher cavalos e cervos, duas curicacas em recuperação esperam pela liberdade. Uma delas, com a asa esquerda ferida por três tiros de chumbo, mal consegue deixar a mureta até o galho colocado estrategicamente para incentivá-la a movimentar-se. Ao ouvir vozes do outro lado da porta, ela ensaia um canto estridente, mas logo volta ao silêncio. Desde junho, a ave vinda da Serra que chegou ao Preservas – Núcleo de Conservação e Reabilitação de Animais Silvestres da UFRGS, em Porto Alegre, se recupera dos ferimentos causados pelo homem. Corre o risco de não voltar a voar.
Em outro espaço de reabilitação, a ONG Voluntários da Fauna, há três décadas atuante na Capital, filhotes de gambás que ainda deveriam estar em gestação, mas a mãe foi morta a pauladas, aprendem a se alimentar auxiliados por uma médica veterinária. Casos como esses se tornam ainda mais comuns entre a primavera e o verão, quando aumentam as ninhadas e os animais circulam com frequência nas áreas urbanas à procura de parceiros para reprodução. Como consequência, se tornam vítimas de atropelamentos, choques elétricos e também agressões causadas pelo homem. Mais de 70% dos atendimentos de todo o ano nos centros de recuperação de animais silvestres em Porto Alegre ocorrem entre setembro e março.
Tanto no Preservas quanto na Voluntários da Fauna, ambos habilitados pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema), o número de filhotes perdidos e animais feridos sobe a cada ano. Entre as espécies mais atendidas, estão os gambás, os bugios e diferentes aves, desde andorinhas até as de rapina. Segundo os especialistas, duas situações contribuem para o aumento de casos: a ação humana, relacionada às agressões aos animais, ao desconhecimento sobre a fauna ou à tentativa de ajudar a preservar o meio ambiente, e a expansão urbana.
O Comando Ambiental da Brigada Militar ressalta que por oferecerem abrigo, comida e água fácil, as cidades atraem a atenção dos bichos. Em busca de alimento, porém, eles acabam indo para além do hábitat natural. Quando chegam aos centros urbanos, perdem-se, sem conseguir voltar. Outro fator que contribui para o crescimento de animais vivendo em cidades, apontado pelo comandante interino do Comando Ambiental da Brigada Militar, tenente-coronel Luciano Moritz Bueno, é a soltura indiscriminada das espécies por quem as cria ilegalmente. Somente em 2019, o Comando apreendeu 3.050 animais mantidos em cativeiros irregulares. Neste ano, apenas até agosto, 2.151. Todos foram encaminhados a criadores e mantenedores autorizados.
— Quando os criadores irregulares não sabem como manter os animais em cativeiro, os soltam em qualquer lugar. Eles poderão acabar se reproduzindo sem controle — alerta o comandante.
Os médicos veterinários destacam que, mais do que tentar resgatar um animal encontrado em área urbana, seja filhote ou adulto, o homem deve deixá-lo onde ele está. O chefe do Estado Maior do Comando Ambiental da Brigada Militar, tenente-coronel Vladimir Luís Silva da Rosa, reforça que se o animal apresentar ferimentos ou demonstrar que não consegue se movimentar, é preciso acionar o número 190, da Brigada Militar, que encaminhará a situação ao comando ambiental. Outros órgãos que também podem ser acionados são a própria Sema e as secretarias de meio ambiente dos municípios.
Gambás
Donos de ninhadas que podem chegar a até 12 filhotes de uma única vez, os gambás estão entre os animais que mais são atendidos entre a primavera e o verão. Num único dia, neste período do ano, a ONG Voluntários da Fauna chega a receber 40 gambás. A maioria são órfãos, depois de perderem a mãe gambá em atropelamentos ou agressões causadas pelo homem. A médica veterinária Marina Anicet, uma das responsáveis pelo projeto, aponta que os gambás são de extrema importância para a manutenção do ecossistema, pois se alimentam de escorpiões e baratas, por exemplo, e ainda ajudam no reflorestamento.
Os filhotes que chegam aos centros de tratamento podem levar meses até voltarem à natureza. Ainda prematuros e sem reflexo, eles precisam de auxílio para aprender ações básicas, como se alimentar. Para isso, a equipe do projeto se reveza nos cuidados. Os gambás são alimentados a cada duas horas e aquecidos durante 24 horas — na tentativa de manter o ambiente próximo ao que seria dentro da bolsa da mãe. Para urinar e defecar, recebem estímulo com um algodão úmido, que é passado pelo pequeno corpo e representa o que seria a língua da mãe gambá.
— O gambá sempre será atraído pela lata de lixo e pela comida. Ele acaba entrando na casa e se deparando com o morador. Ambos ficam com medo. É comum termos histórias de o animal ser agredido pela pessoa ou por um cachorro e acabar morrendo. Mas quando o morador vê os filhotes, fica com pena e os traz para nós. Se, realmente, não tivesse conflito com humanos, não teríamos 90% dos casos aqui — comenta Marina.
Bugios
Com potencial de ser a espécie-bandeira da zona sul de Porto Alegre, por conta da quantidade existente naquela região, o bugio-ruivo está na lista dos mais acolhidos nos centros de reabilitação da Capital. No Preservas, pelo menos cinco adultos estão há meses se recuperando. Desde agosto, Lami, que veio do bairro de mesmo nome, é um deles. Foi agredido e expulso do próprio bando. Depois de recuperar os movimentos da pata dianteira esquerda, deve voltar à natureza. Mas é comum o atendimento a macacos mutilados depois de escalarem fios elétricos para cruzar de um ponto a outro.
— Cerca de 20% dos bugios que recebemos até hoje tiveram algum tipo de ação relacionada com os choques elétricos — revela o coordenador do Preservas, Marcelo Alievi.
Na Voluntários da Fauna, os bugios-ruivos chegam ainda filhotes, muitas vezes vítimas de conflitos com cães e humanos, choques elétricos e atropelamentos. Passam por tratamento que exige, inclusive, horas diárias ao sol em um dos viveiros. Em 2019, foram atendidos 14 bugios. Em 2020, até o início de setembro, já eram 19 animais. Para Marina, o maior problema é a urbanização e a consequente a ocupação de espaços que antes eram dos primatas.
— São comuns as histórias de famílias que começam a alimentar o bugio e o deixam mais confortável para entrar na casa. Mas o dono não gosta da ideia e acaba partindo para a agressão com pedradas e pauladas. As pessoas não percebem que os bugios são os nossos anjos da guarda — salienta Marina.
Espécie endêmica da Mata Atlântica, os bugios-ruivos são considerados ameaçados de extinção em nível nacional. Na região, encontram-se na categoria vulnerável. Pesquisadora com ênfase em primatas, que atua no setor de mamíferos do Museu de Ciências Naturais do Rio Grande do Sul, Márcia Jardim aponta para a existência de pelo menos 1,2 mil indivíduos na região que abrange os morros São Pedro e da Extrema, na Capital. Outros 10 grupos de bugios também foram observados na Reserva do Lami e entorno. E estimativas indicam até 900 vivendo no Parque Estadual de Itapuã, em Viamão.
— Os bugios exercem um importante papel ecológico na manutenção dos ecossistemas, pois atuam como dispersores de sementes. Ao se alimentarem de frutos de árvores nativas, eles levam as sementes através de suas fezes para diversos locais na mata, ajudando a perpetuar e manter a diversidade de nossas florestas. Além disso, têm importância para a saúde pública, pois são considerados pelos órgãos de saúde como sentinelas para a doença da febre amarela. É muito importante destacar que o bugio não transmite o vírus! Quem transmite é o mosquito! Eles são vítimas dessa doença e nos ajudam a nos proteger dela — enfatiza Márcia.
Aves
Desde a criação do Preservas, em 2005, quase 60% dos atendimentos foram de aves, de diferentes espécies, das pombas aos gaviões. Um carcará adulto, de 1,02kg, está há dois meses sob os cuidados dos veterinários e, quando estiver completamente recuperado, será encaminhado a um viveiro indicado pela Sema. Encontrado numa casa desocupada, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, o carcará tinha uma lesão comprometendo uma artéria da asa esquerda e impedindo a irrigação da extremidade. Socorrido pelo Corpo de Bombeiros e pelo coordenador do Preservas, o carcará precisou ter a asa amputada. Jamais voltará a dar um voo.
Em outro espaço do mesmo centro, um gavião-de-cauda-curta que está em recuperação há seis meses espera por um lugar para viver para sempre. Ele, que foi encontrado em Esteio, fraturou uma das asas e não consegue mais estendê-la. Também não poderá voltar a ser livre. Precisa de um novo viveiro, já que o Preservas é como uma casa de passagem até a recuperação e soltura.
Nos dois casos, o coordenador do Preservas explica que é difícil definir o que pode ter causado os ferimentos nas duas aves. Um problema recorrente destacado por Alievi é o choque contra vidraças espelhadas:
— As vidraças também são obstáculos físicos que acabam enganando as aves, e elas acabam colidindo achando que é o céu, que é uma árvore. E, obviamente, são colisões extremamente graves e que, de alguma forma, trazem prejuízos importantes para muitas espécies.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) informa que foram atendidos 6 mil animais silvestres no Centro de Triagem de Porto Alegre, até o dia 25 de setembro. Em todo o ano de 2019, o atendimento foi de 8,5 mil animais. Entre as espécies atendidas, 80% são aves, 10% mamíferos e os outros 10% são répteis.
AÇÃO DE CONSCIENTIZAÇÃO
Por conta da chegada da primavera, a Comissão de Animais Silvestres do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Rio Grande do Sul lançou uma campanha no próprio site para esclarecer a importância da fauna urbana.
A médica veterinária Moira Ansolch, coordenadora da Comissão, explica que com o deslocamento maior dos animais neste período do ano, as pessoas passam a perceber a existência deles.
— Muitos acham que estes animais estão deslocados, quando, na verdade, a gente tem uma fauna que habita as cidades. São gambás, ouriços, morcegos, macacos e felinos selvagens, como o gato-do-mato. Às vezes, aparecem até veados. Precisamos conversar com as pessoas e entender as dúvidas que elas têm e tentar melhorar esta convivência — justifica.
LOCAIS AUTORIZADOS
É o Estado quem habilita os locais para receber, triar, reabilitar, destinar e manter os animais silvestres e exóticos. Eles recebem a autorização de uso e manejo de fauna. Conforme a Sema, no Rio Grande do Sul os animais silvestres feridos são enviados a seis centros de atendimento emergencial (três em Porto Alegre, um em Cachoeira do Sul, um em Passo Fundo e um em Canoas), a três centros de reabilitação, localizados em Pelotas, Imbé e Rio Grande, e a três zoológicos. A Divisão de Fauna do Departamento de Biodiversidade confere a disponibilidade dos locais e orienta a destinação ao mais próximo que tenha condições de realizar o atendimento. Já os animais sem condições de retorno à natureza são encaminhados a quatro criadouros científicos (um em Passo Fundo e três em Porto Alegre), sete mantenedouros (Arroio do Sal, Gravataí, Viamão, Passo Fundo, Morro Reuter, Igrejinha e Santa Maria) e seis zoológicos (Canoas, Sapucaia do Sul, Caxias do Sul, Cachoeira do Sul e dois em Gramado).
Telefones úteis
- Sema-RS - Divisão de Fauna: (51) 3288-8187
- Polícia Militar: 190
- Centro de Triagem Ibama RS: (51) 3224-8937