Alvo de fazendeiros e caçadores durante décadas, o lobo-guará tornou-se raridade no Estado. Nos últimos 30 anos, o maior canídeo nativo da América do Sul foi fotografado apenas três vezes em terras gaúchas. Desde 2002, a espécie está no nível mais alto de ameaça de extinção no Rio Grande do Sul, como animal criticamente em perigo. Para provar que esses lobos de andar desajeitado, patas longas e finas e pelagem avermelhada seguem vivendo em pontos isolados do Estado, uma pesquisa inédita pretende mapear as áreas onde eles ainda circulam e reverter a possível extinção do lobo-guará.
Iniciado em março de 2015, o projeto Lobos do Pampa: ecologia e conservação do lobo-guará no Sul do Brasil é coordenado pelos doutores em biologia Carlos Benhur Kasper e Manoel Ludwig da Fontoura Rodrigues e pelo veterinário Magnus Severo Machado, participantes da ONG Mamíferos RS. A pesquisa tem apoio financeiro da Fundação Boticário de Proteção à Natureza, em seleção ocorrida em 2014 por meio de edital, e parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e com a Universidade Federal do Pampa (Unipampa).
– Sabemos que são poucos espécimes, e é possível que estejam isolados em locais muito distantes. Pretendemos encontrar as diferentes populações, saber quantos existem e explicar a conexão entre eles – afirma Benhur, professor da Unipampa.
As primeiras dificuldades surgiram ainda no começo da pesquisa, e quase fizeram o trio desistir. Para tentar registrar o lobo-guará em fotos, os pesquisadores instalaram 14 armadilhas fotográficas nos parques de Aparados da Serra e Serra Geral – registros datados da década de 1970 apontavam a área como habitat do animal. Durante a primeira checagem das imagens captadas, Benhur e Manoel perceberam um problema nos equipamentos que poderia comprometer todo o processo: as câmeras só disparavam segundos depois da passagem dos animais em frente ao sensor, impedindo a identificação.
– Perdemos 20% do orçamento do projeto e quatro meses de dedicação até trocarmos por máquinas mais ágeis e modernas – recorda Benhur.
Depois da mudança, o trio seguiu fazendo a checagem das câmeras a cada 45 dias. Com chuva ou sol, o trabalho exige muito mais do que preparo físico e determinação – para caminhar longas trilhas em meio à mata fechada e enfrentar as temperaturas abaixo de zero no inverno da região serrana. É preciso paciência. A ida a campo ocorre entre sexta e segunda-feira, nas folgas dos pesquisadores que, ao longo da semana, desenvolvem outras atividades ligadas à profissão. Há um revezamento entre os três nas idas a campo. Geralmente, vão em dupla. Durante o dia, eles trocam as pilhas e os cartões de memória das câmeras e analisam os dados. À noite, fazem as chamadas focagens noturnas usando um holofote que, quando apontado em direção às florestas e aos campos, possibilita uma visualização de mais de 50 metros de distância.
– A gente já se acostumou a dominar a expectativa. Sabemos que é um trabalho difícil e que não dá para prever quando teremos a primeira imagem. O certo é que não conseguiremos esconder a emoção se ele aparecer – afirma Manoel, pós-doutorando na UFRGS.
Este será o primeiro estudo indicando como o lobo-guará vive na Região Sul. Até hoje, as únicas pesquisas publicadas foram desenvolvidas na região do Cerrado.
Vítima de caçadores, fazendeiros e crendices
Em 2002, quando o Rio Grande do Sul elaborou o Livro Vermelho, a primeira lista própria da fauna ameaçada de extinção no Estado, o lobo-guará entrou direto no grau mais crítico das três categorias em que foram catalogadas 261 espécies. Dez anos depois, o livro foi ampliado e atualizado: de 1.583 espécies analisadas, 280 correm risco de desaparecer. O levantamento serve como base para as multas aplicadas nos crimes ambientais contra os animais ameaçados e também auxilia nos licenciamentos ambientais, que liberam novas obras a partir da relação oficial da fauna da região.
– A eliminação de algumas espécies pode afetar comunidades inteiras, levando ao seu empobrecimento, à desestruturação e até mesmo ao colapso. Além disso, várias espécies têm desaparecido sem conhecermos sua importância e alguns usos potenciais para medicamentos e alimentos. Eles podem estar sendo perdidos antes mesmo de serem descobertos – destaca a bióloga Márcia Jardim, da Fundação Zoobotânica, órgão responsável pela elaboração das listas de espécies ameaçadas da fauna e da flora gaúchas.
No Rio Grande do Sul, o lobo-guará quase foi extinto por caçadores interessados na pelagem, por fazendeiros preocupados com os rebanhos, pela expansão agropecuária e urbana e até por crendices populares – uma delas diz que pode dar sorte guardar o olho esquerdo de um guará, como um amuleto, depois de arrancá-lo com o bicho ainda vivo.
– Os dados nos mostram que a população está muito inferior a 50 espécimes em todo o Estado. Suspeitamos, inclusive, que ele possa estar perto da extinção regional. É um caso preocupante, já que o lobo ajuda a equilibrar a fauna e é um excelente dispersor de sementes – alerta Márcia.
Por cruzar longas distâncias, o lobo acaba ajudando na recomposição dos campos e das florestas degradadas. Os animais ingerem sementes, que, depois do trato digestivo, saem prontas para germinar na terra. O lobo ainda colabora para o controle e o equilíbrio em populações vistas como indesejadas pelo homem, como as serpentes e os roedores – espécies que fazem parte da dieta do animal.
– O lobo-guará está no topo da pirâmide alimentar e tem grande importância ecológica, pois pode regular a população de presas naturais e, desta forma, influenciar toda a dinâmica do ecossistema em que vive. Na ausência de predadores, suas presas naturais, como roedores, aves, répteis e insetos, tendem a se multiplicar exponencialmente. Se a pesquisa comprovar que os guarás continuam por aqui, poderemos montar estratégias e direcionar o atendimento à espécie – reforça a bióloga.
Com a intenção de ajudar a salvar o lobo-guará, a cada checagem das armadilhas fotográficas os pesquisadores percorrem mais de 40 quilômetros a pé e de carro por trilhas em matas quase intocadas pelo homem, córregos, campos isolados, estradas de terra e beira de cânions. Quando está em campo, a dupla não tem tempo para o almoço, e o fôlego chega a desaparecer ao desafiar morros cobertos por musgos, que engolem os pés a cada novo passo e deixam a caminhada ainda mais pesada. Ambos também carregam a tensão: olhar e ouvidos devem estar atentos para o possível surgimento de javalis, porcos selvagens que andam em manadas, podem pesar mais de 100 quilos e atacar ao se sentirem ameaçados.
Desde julho deste ano, os pesquisadores optaram por filmar mais do que fotografar. Eles também moveram as armadilhas de lugar. Sete delas estão distribuídas na Floresta Nacional de São Francisco de Paula (Flona), outras três em São José dos Ausentes e mais seis em Alegrete. Os pontos exatos não são divulgados para evitar problemas no desenvolvimento da pesquisa. Desde o início do trabalho, seis câmeras foram furtadas em campo.
Na Flona, as câmeras obedecem a um distanciamento de 1,6 quilômetro uma da outra. Em Ausentes, elas ficam em áreas a mais de 10 quilômetros da última casa avistada. Cada câmera está programada para filmar 15 segundos de vídeo, a partir da ativação do sensor quando algo passa na frente dele. Em seguida, a câmera fica desativada 15 minutos. Desde o início da pesquisa, mais de 50 mil imagens de quase 30 espécies foram registradas pelos pesquisadores. Entre elas, algumas ameaçadas de extinção no Estado, como o puma, o gato-do-mato-pequeno (o menor gato selvagem da América do Sul) e a jaguatirica.
– O lobo-guará acabou virando um projeto guarda-chuva. A partir da busca por ele, acabamos conhecendo mais a nossa fauna. O lobo se tornou a espécie que vai nos ajudar a fazer a conservação do ambiente onde ele está presente – justifica Manoel.
Zoos procuram macho para fêmeas viúvas
Benhur e Manoel não são os únicos à procura do lobo no Estado. Os zoológicos de Sapucaia do Sul, na Região Metropolitana, e de Gramado, na Serra, estão há um ano tentando obter um macho de guará. Em ambos os locais há fêmeas viúvas – duas no zoo de Sapucaia e uma no zoo da Serra. Segundo a bióloga do setor de zoologia do Parque Zoológico de Sapucaia, Vanessa Souza Silva, cogitou-se a permuta de um único espécime vindo da região central do Brasil para cruzar com as fêmeas.
Em Sapucaia, as duas lobas são mãe e filha. Elas vivem em ambientes separados há um ano, desde um desentendimento. Nara, a matriarca, tem 11 anos e veio de um zoo localizado em São Carlos (SP). Em Sapucaia, ela ganhou Prenda, que nasceu em 2009 e teve o nome escolhido numa votação entre os visitantes. Hoje, apenas Prenda está em ambiente que permite visitação. Nara fica na área apartada do público.
– Os visitantes questionam o isolamento de ambas, mas é da espécie. Os lobos só se reúnem na época de procriar. Costumam viver na solidão e se sentem melhor assim – explica Vanessa.
Desde 1998, o Brasil celebra o dia do lobo-guará em 17 de outubro. A escolha da data lembra a primeira reunião de pesquisadores da espécie, realizada em São Paulo.
– Já na década de 1990 havia a preocupação com a extinção. A data serve como um alerta – destaca Vanessa.
Em Sapucaia, o zoo terá uma comemoração especial no próximo dia 16. As atividades serão voltadas para as crianças e incluem pinturas, confecção de máscaras e revista para colorir.
Tática para enfrentar javalis: correr e subir na primeira árvore
Na investida mais recente de Benhur e Manoel, entre os dias 9 e 11 de setembro, a reportagem de Zero Hora acompanhou o trabalho nos Aparados da Serra. Hospedados na sede da Flona, os pesquisadores iniciaram o levantamento ainda na noite de sexta-feira, com a focagem nas estradas existentes a mais de 15 quilômetros de distância da área central de São Francisco de Paula. A temperatura era de 9ºC, por volta das 20h, quando os dois prepararam o holofote no carro e saíram em meio a uma neblina que umedecia os cabelos.
– É um azar, mas temos que respeitar a natureza. Se a névoa persistir, não vamos seguir – alertou Manoel, posicionado na janela do carona com parte do corpo para fora do carro e empunhando a luminária.
Benhur dirigiu o próprio veículo nas estradas esburacadas e sem iluminação por perto. As únicas luzes eram do holofote, da lanterna de cabeça usada por ele e dos faróis do carro. Os sons da noite se intensificaram: o canto do bacurau-tesoura-gigante e o piar da coruja-das-torres.
Mesmo reforçando a dificuldade de encontrar o lobo-guará, os pesquisadores não esconderam a vontade de deparar com o animal. Chegaram a brincar com a possibilidade, ao longo dos 18 quilômetros percorridos naquela noite.
Na manhã seguinte, a função começou por volta das 6h, dentro da área de 1.606,60 hectares da Flona. Sete trilhas, algumas com mata fechada, foram percorridas num único dia, totalizando 23 quilômetros – 80% delas feitas a pé. Logo no início da Estrada do Macaco Branco, pegadas de javali ainda frescas advertiram a equipe para companhias indesejáveis.
– Se depararmos com um javali, cada um corre para um lado e sobe a uma altura de um metro na primeira árvore que encontrar. O javali ganha velocidade em linha reta. Então, precisaremos nos separar – orientou Benhur.
Por sorte, depois de quatro quilômetros, nenhum javali foi avistado. No caminho entre araucárias de troncos com dois metros de circunferência e samambaias com mais de seis metros de altura, apenas uma serpente boipeva foi vista tomando sol. Nem se moveu com a passagem da equipe.
Munidos de bloco, caneta, trena e binóculos, os biólogos caminharam o tempo todo intercalando olhares para o chão, em busca de pegadas de animais diversos, e para o céu, atentos aos urubus que circulavam sobre suas cabeças – havia carniças de animais ao longo do trecho.
No segundo dia de levantamento, que só terminou depois de 12 horas, vestígios de pegadas de gatos selvagens, de puma e até de mão-pelada (guaxinim) foram encontrados nas trilhas da Flona. As penas do que um dia foi uma coruja também acabaram fazendo parte do apontamento.
– O animal que o pegou foi ágil. Não deixou nenhum vestígio além das penas. Pode ter sido um puma ou uma jaguatirica, pois não deixam rastros pelo caminho – sugeriu Benhur.
O terceiro dia nem tinha amanhecido quando a equipe partiu para São José dos Ausentes, na missão mais árdua do final de semana: visitar as três armadilhas fotográficas espalhadas em pontos isolados na divisa com Santa Catarina. Na região conhecida como Serra da Rocinha, a equipe fez 20 quilômetros a pé percorrendo áreas entre fazendas abandonadas e cânions menos conhecidos, mas de beleza ímpar. No caminho, trechos com mato seco até o joelho, terrenos úmidos cobertos de musgos, campos com pinus que não se desenvolveram e morros íngremes e repletos de pedras.
Numa altitude de 1,2 mil metro, o coração começou a disparar mais rápido sob o sol do meio-dia, com temperatura de 25ºC. Depois de sete quilômetros de caminhada ininterrupta, o ar quase desapareceu. Foi preciso uma parada rápida para beber um gole de água.
– Restam alguns quilômetros. Você está vendo aqueles pinheiros pequenininhos lá longe? A gente vai andar até eles e ainda teremos mais dois quilômetros depois – reforçou Benhur à repórter.
Depois de mais de três horas de ida até a primeira armadilha, o local foi encontrado. Pausa de 30 minutos para lanchar e seguir até a próxima câmera, já no caminho de volta. A parada foi feita à beira do cânion, com céu aberto e apenas os sons das aves e do vento. Pelo caminho, registros de veados e aves pequeninas chocando na mata. Por vezes, alguma delas se assustava com os passos e levantava voo.
A expedição chegou ao fim por volta das 18h, sem que a dupla conseguisse chegar à terceira câmera – posicionada em outro ponto do município. No retorno ao centro de Ausentes, os pesquisadores conferiram o material recolhido. Era o momento mais esperado da viagem. E havia um motivo: em junho deste ano, o lobo-guará foi registrado em São José dos Ausentes pelo empresário Tiago Korb, de Santa Maria, que percorria uma trilha no local. Ele conseguiu fazer uma sequência de fotografias do animal fugindo pelos campos. A aparição, depois de sete anos sem registros oficiais, fez os biólogos instalarem as três armadilhas na cidade que não fazia parte do projeto inicial.
No total desta expedição, foram produzidas 2.110 fotos e 1.394 imagens de vídeo. Destas, a dupla conseguiu utilizar 50 fotos e 98 vídeos de mamíferos selvagens diversos. Nenhum lobo-guará apareceu. A busca prosseguirá.
– É um trabalho bastante árduo, mas estamos com esperança de encontrá-lo. E, quando o encontrarmos, será apenas o primeiro passo. Depois, vamos iniciar estudos ecológicos, estudos genéticos e o que for necessário para salvá-lo. Nosso objetivo é não deixar que mais esta espécie se perca no Estado do Rio Grande do Sul – afirma Benhur.
Sem querer, empresário fez fotos que comprovaram existência
É com base no relato do empresário Tiago Korb, de Santa Maria, que os biólogos pesquisadores acreditam estar próximos do registro da espécie. Em 26 de junho deste ano, por volta das 10h, Tiago caminhava com um grupo de trilheiros numa região isolada de São José dos Ausentes quando avistou um lobo-guará.
– Vi o bichinho dormindo sobre um capim amarelo, que dava na altura do joelho. Ele acordou com o nosso barulho e nos olhou, assustado. Peguei a câmera e consegui fazer umas imagens nos 50 metros que ele correu. Foi muito rápido. Antes de sumir, ele parou no alto de uma coxilha e nos olhou de relance – recorda.
Tiago fez 16 imagens do bicho correndo e postou numa rede social, sem imaginar a importância do achado. Em poucos dias, as fotos do empresário se espalharam entre biólogos e amantes da natureza, até chegarem nas mãos de Benhur e Manoel.
– Não tinha a ideia de estar contribuindo para a comprovação da existência da espécie. Torço para que os pesquisadores tenham sucesso na jornada – afirma Tiago, que repassou à dupla as coordenadas do local.
Ao contrário de Tiago, a bióloga Rosane Marques, sabia exatamente o que era o animal presente em duas imagens captadas pelas armadilhas fotográficas instaladas por ela na Flona, em 1º de novembro de 2009. Nem foi preciso a revelação do filme fotográfico.
– Quando vi aquele negativo, olhei de novo e disse "não pode ser verdade!". Mas o bicho é inconfundível. Fiquei tão emocionada que quase tive um chilique. Realmente, não esperava. Foi meu presente de aniversário – relata.
Desde 1999, a integrante da unidade de assessoramento ambiental do Ministério Público pesquisa nas horas vagas os mamíferos de médio e grande porte existentes na Flona. Rosane não imaginava captar o bicho, que naquele mesmo ano havia sido registrado em Cacequi e, antes, só na década de 1970.
A partir das duas fotos, feitas à noite numa das trilhas da floresta, a bióloga passou a estudar a espécie. Publicou, quatro anos depois, um artigo discutindo os motivos da presença do lobo-guará dentro da Flona.
– Ele deveria estar se refugiando aqui, pois é uma unidade de conservação. O que ocorre na região é que os fazendeiros tocam fogo no campo todos os anos, e não há uma vegetação de campo bem desenvolvida. Então, sobram poucos lugares para ratos se esconderem e outros pequenos animais que podem servir de alimento para o lobo-guará. É como se o lobo fosse ao supermercado com as prateleiras quase vazias. A gente detona o ambiente, e o animal não tem onde se refugiar. Em vez de eles serem residentes de um determinado local, eles acabam virando nômades – diz Rosane.