Uma vez eu perguntei para o Foguinho:
“Qual foi o maior jogador de futebol que o senhor viu jogar?”
A resposta me desconcertou.
O Foguinho era uma figura meio mítica, para mim, por causa das histórias que contava o meu avô a seu respeito. Todas as suas façanhas como jogador, como técnico e até como juiz. Era um homem reto. De princípios. E que amava o que fazia. O mundo se torna melhor, quando as pessoas amam o que fazem.
Em 1976, o Grêmio recontratou o Foguinho como treinador. Era uma tentativa desesperada de evitar o octacampeonato do Inter. Fiquei curioso para ver o que aconteceria, porque o Foguinho parecia ser dotado de poderes mágicos, tamanho era o seu conhecimento de futebol.
Ele chegou e tomou uma providência estranha: decidiu que, todas as manhãs, os jogadores assistiriam ao hasteamento da bandeira do Grêmio e cantariam o hino composto por Lupicínio. Foguinho queria que os jogadores sentissem orgulho da camisa listrada que vestiam, mas já estávamos na segunda metade dos anos 70, os tempos eram mais cínicos.
Semanas depois, ele se demitiu. Ao se despedir do clube, o próprio Foguinho concluiu: “Eu sou uma página virada do futebol”.
Ainda naquele ano, o Professor Ruy Carlos Ostermann o convidou para compor a bancada do Sala de Redação. Foi a melhor formação do programa, sobretudo devido aos embates entre Foguinho e Cid Pinheiro Cabral, velhos personagens do futebol que eram adversários, mas se respeitavam.
Então, eu, quando me tornei jornalista, quis entrevistar o Foguinho, e o fiz várias vezes a fim de escrever algumas reportagens e também para o meu livro sobre a história dos Grenais. Conversávamos em seu apartamento, na Senhor dos Passos, o Foguinho sempre amigável, sempre atencioso.
Pouco antes dele morrer, em 1996, o Professor Ruy foi visitá-lo no hospital e, ao voltar para a redação, veio falar comigo: “O Foguinho perguntou por ti”. Comoveu-me ele ter pensado em mim naquela hora dura.
Foguinho foi um dos maiores personagens do futebol gaúcho. Uma lenda. Por isso me surpreendi com sua resposta àquela pergunta: qual era o maior jogador que ele vira em campo? Ora, Foguinho tinha visto todos os grandes, desde Friedenreich até Pelé. Mas supus que sua escolha não seria tão óbvia. Talvez preferisse um dos gênios do time que montou no Grêmio, como Aírton ou Gessy, ou quem sabe um dos famosos que jogaram a seu lado, como Lara ou Luiz Carvalho. Ou até um craque estrangeiro, como Di Stéfano ou Puskas, que ele enfrentou na Espanha. Mas não. Não foi nenhum desses. Foguinho respondeu:
“Noronha”.
Fiquei perplexo. Noronha??? Custei a lembrar de quem era o Noronha. Foi um jogador dos anos 30 e 40. Começou no Grêmio e, depois, formou uma linha média célebre no São Paulo: Ruy, Bauer e Noronha. Noronha chegou a jogar na Seleção no famoso sul-americano de 49 e na Copa de 50.
Tudo bem, bom jogador, talvez ótimo, mas “o melhor” não seria exagero? Aí Foguinho explicou que, quando Noronha jogava de centromédio, estabilizava o time. Mas quando jogava de centromédio, não como lateral, onde se tornou ídolo do São Paulo, ou como zagueiro, onde se tornou ídolo da Portuguesa. Segundo Foguinho, Noronha tinha uma inteligência privilegiada. Com ele, o time ficava protegido atrás e fluente na frente.
“Noronha!”, repetiu o Foguinho, com sua voz rouca e seus erres triplos. “Noronha!”
Sei do que Foguinho falava. Não falava da individualidade, falava do coletivo. Noronha estava a serviço da equipe, não do brilho de solista. O centromédio tem de ser assim. Ele tem uma missão que às vezes o deixa à sombra, mas é fundamental para o bom andamento de um time de futebol.
Foi o que Renato fez no Grêmio, contra o Palmeiras, e que deu certo, domingo passado: ele escalou um centromédio, Lucas Silva, acompanhado de outros dois marcadores, Matheus e Darlan. Funcionou. Aquele time desarticulado, que vinha sendo o Grêmio, voltou a ter lógica, comportou-se a contento e foi melhor do que o forte adversário.
O Pedro Ernesto tem razão: time bom tem de ter um centromédio vigilante. É indispensável. Isso já se sabia desde os anos 30. Um centromédio. Forte, atento, marcador. E, se souber jogar, como Noronha, melhor ainda.