Lá adiante, na calçada, vinham seis caras bem na minha direção. Seis caras grandes. De imediato, lembrei de uma noite em que estávamos voltando de uma festa no Gondoleiros, eu e os amigos do IAPI. As festas no Gondoleiros eram as melhores, principalmente as comandadas pelos Discocuecas – os Discocuecas eram o Pretinho Básico da época.
Vivíamos a era dos Embalos de Sábado à Noite. “Discoteque”, dizia-se. Criaram-se mitos em torno da discoteque depois do filme do Travolta. Mulheres sinuosas. Prazeres mundanos. Loucuras. Para nós, guris do subúrbio, a vida acontecia em meio às luzes estroboscópicas da discoteque. O problema é que estávamos sempre do lado de fora, a não ser quando conseguíamos furar as festas do Gondoleiros. Caso daquela noite.
Foi mesmo uma noite divertida, inclusive conseguimos dançar com algumas gurias e o Plisnou, se não me engano, até beijou uma delas, o que, naquele tempo, se tratava de uma façanha.
Então, alta madrugada, umas quatro ou cinco horas, por aí, nós começamos a viagem de volta para casa. Tomamos um ônibus que nos deixou na boca da Industriários, perto do bar Amarelinho, e por ali tocamos. Caminhávamos devagar, porque o Fernando Araújo estava se recuperando de um acidente de carro e precisava se mover apoiado em um andador.
Aí, pouco antes de chegarmos ao Alim Pedro, vimos que, a duas quadras de distância, vinha um bando de, sei lá, algo que nos pareceu uns 30 ou 40 sujeitos. Eles gritavam e corriam em nossa direção e, por Deus!, alguns levavam TOCHAS nas mãos. Tochas! O que era aquilo?
“Vamos correr!”, propôs o Jorge Barnabé, sensatamente, uma vez que nós éramos seis e, eles, dezenas. Se estivessem mal intencionados, não teríamos chance.
“Vamos correr! Vamos correr!”, concordamos. Menos o Fernando, com aquele andador:
“Eu não vou correr”.
Olhamos melhor. Era um grupo formado por negros. Velhos cronistas diriam que eram negros altos, fortes e espadaúdos. Todos podiam jogar na zaga do Guarany de Bagé. Eram o dobro do nosso tamanho. Transformariam nossas caras em xis-búrguer, se quisessem bater em nós.
“Vamos correr!”, insistiu o Amilton Cavalo.
“Vamos! Vamos!”
“Eu não vou correr”, repetiu o Fernando, e acrescentou uma frase imortal: “Me deixem apanhar descansado”.
Diante desse apelo, nos comovemos.
Mas advertimos:
“Nós vamos ficar contigo, Fernando. Mas, se nós apanharmos deles, depois tu vai apanhar DE NÓS”.
Pois os caras vieram, fazendo alarde, com aquelas tochas nas mãos. Vieram e vieram e vieram... Nós nos encolhemos na calçada. Eles chegaram, por fim. E... passaram por nós como se não existíssemos. Nem nos olharam. Por que iam dar bola para aqueles ratos?
Pois foi no que pensei quando vi aqueles seis caras vindo em minha direção, dias atrás. Não porque temesse ser espancado ou assaltado ou qualquer coisa do gênero, e sim porque eles estavam sem máscara. Nenhum usava máscara e um deles, um gordo, tossia. Cristo! Olhei para os lados, procurando uma rota de fuga. Não havia saída. Os carros zuniam pelo leito da rua, não tinha como atravessar, nem desviar. E eles já estavam perto, cada vez mais perto.
Observei com mais atenção: mais um tossia. Um que puxava uma perna. Já deviam ter contaminado uns aos outros e agora respiravam impunemente, exalando coronas pelo ar. Li que o corona é bem leve e fica flutuando por algum tempo, depois de voar da boca de um infectado. Ele pode boiar no oxigênio por até 20 metros, mesmo ao ar livre. Li isso.
Estremeci.
Quase que podia ver aqueles seis tipos rodeados por nuvens pestilentas de coronas. E eu teria de passar entre eles. O vírus maldito ia se impregnar no meu rosto, ia colar na minha roupa, nem adiantava eu estar de máscara, como estava, porque ele ia se infiltrar por meus olhos, grudar em meus cabelos, até pelos ouvidos me invadiria. Oh, Deus!
Eles se aproximando e se aproximando. Tossiam. E tinham uma aparência de contaminados. A maior cara de contaminados, se você quer saber. Estávamos a dois ou três metros de distância, quando tomei uma decisão. “Vou reagir!”, disse para mim mesmo. E girei nos calcanhares e corri. Corri covardemente. Confesso que corri. Não iria repetir o Fernando. Não iria me infectar descansado. Porto Alegre já foi mais segura, francamente.