Houve tempo em que era proibido escrever a palavra bunda no jornal. Pelo menos em jornal, digamos, respeitável, como a Zero Hora. Esse interdito, para mim, era revoltante, porque bunda não é calão; bunda é a designação popular para essa tão apreciada parte da anatomia humana. Seu sinônimo mais sisudo, “nádegas”, não diz tudo o que a bunda quer dizer.
Para contestar o veto abjeto, escrevi, um dia, uma crônica narrando a história da palavra bunda. Que é desbundante. Ocorre que milhares dos escravos trazidos para o Brasil eram os “bundos”, que falavam a língua “quimbundo”. Uma das características dessa etnia era a beleza empinada das nádegas de suas mulheres, que os portugueses muito admiravam. E, como os portugueses sabiam que se tratava do povo bundo, passaram a se referir àquelas mulheres como bundas, e como as bundas das bundas eram belas como as de nenhuma europeia podia ser, bunda virou sinônimo para qualquer bunda.
O título da minha crônica era, e só podia ser, “A bunda”, palavra que repeti dezenas de vezes no texto. Assim, julgo que contribuí um pouco para a liberdade da bunda na imprensa brasileira.
Conto isso porque li, nesta semana, uma matéria sobre uma bunda ilustre: a da Paolla Oliveira. Ela, Paolla, disse ter ficado decepcionada com a repercussão da série Felizes Para Sempre?, que estrelou há cinco anos, porque toda gente só falava em sua bunda, e não em sua atuação.
A cena a que Paolla se refere, de fato, ficou famosíssima: a câmera a filma de costas, caminhando só de calcinhas em direção a uma janela. Sem se virar, ela abre as cortinas de par em par e observa a paisagem lá fora, com a sinuosa silhueta iluminada pelo sol.
“A gente pensa em tantas outras camadas que aquela personagem tem e aí vira uma cena de bunda...”, desabafou a triste atriz.
É uma reação clássica de pessoas que são muito elogiadas pela beleza física. E um melancólico preconceito. Porque a beleza física não é apenas presente da natureza. Ela também é conquistada. Uma pessoa que nasce bonita tem de se manter bonita. Tem de trabalhar para isso.
Mais: diariamente, o caráter da pessoa vai-se imprimindo em seu rosto e em seu corpo. Você olha para alguém e, por suas expressões e por sua postura, adivinha se essa pessoa é boa ou maliciosa ou segura ou ingênua. É uma primeira impressão que, às vezes, pode até se desfazer, mas que em geral se confirma.
Uma bonita bunda também confere personalidade a quem a possui. Pessoas retas, sem bunda, parecem amargas. Não é por acaso que a bunda é uma preferência estética do brasileiro, esse povo tão irreverente.
Paolla deveria ter se sentido orgulhosa da celebridade de sua bunda, principalmente numa época como a nossa, em que todos se levam tão a sério e em que o noticiário só da conta de coisas sombrias, como coronas, gafanhotos, discos voadores e ciclones-bomba.
Não, Paolla, não rejeite sua bunda. Festeje-a. E deixe que todos nós a festejemos também, como espectadores agradecidos que somos. Desta forma, em sua homenagem, reproduzirei aqui o poema imortal do imortal Carlos Drummond de Andrade, que leva o título de A bunda, que engraçada:
A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.
Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora – murmura a bunda – esses garotos
ainda lhes falta muito estudar.
A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.
A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.
Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.
A bunda é a bunda,
redunda.