Comentei Grêmio versus Peñarol, pela Rádio Gaúcha, neste domingo. O Grêmio foi campeão da América de 1983. Estamos cultivando essas nostalgias durante o isolamento. Pegamos um jogo antigo e importante e o revivemos como se estivesse acontecendo agora. Tem sido bom. Recuperamos velhas emoções e nos surpreendemos com certas façanhas que tinham sido esquecidas.
Durante a transmissão, enquanto o Pedro Ernesto narrava com o entusiasmo de quem via a partida pela primeira vez, fiquei pensando: por que não fazemos o mesmo em outras seções da vida que foram interrompidas pela pandemia?
Podíamos rememorar as alegres aglomerações de outrora. Hoje, elas nos fariam mal, mas já nos fizeram tão bem...
Gostaria de reprisar uma aglomeração que nos foi muito cara: a do Doctor Jekyll, ali no Largo da Epatur. Havia uma cabeça de onça pendurada numa das paredes do Doctor Jekyll, logo na entrada. O Professor Juninho ficava parado bem embaixo daquela onça, com sua garrafinha de cerveja na mão. Ele acreditava que havia um simbolismo na cena: ele e a onça se fundiam numa só felinidade, o que titilava o instinto das mulheres. Elas se perturbavam com a sugestão selvagem do quadro e se aproximavam dele miando.
Bem, era o que dizia o Juninho. Uma noite em que fui ao Doctor Jekyll sem ele, tentei usar a tática da onça. Peguei minha cervejinha, fiz um olhar animal e parei embaixo da cabeça do bicho. Não deu muito certo. As mulheres não riam para mim. As mulheres riam de mim.
Noutra vez, o Degô foi nos encontrar clandestinamente no Doctor Jekyll. Ele alegara para a namorada da época que estava cansado e ia para casa, a fim de usufruir de um sono restaurador. Foi direto nos encontrar embaixo da cabeça da onça. Enquanto conversávamos e ríamos e sorvíamos nossas cervejas, o Degô encostou-se na parede. O problema é que o celular dele estava no bolso de trás das calças e, ao tocar na parede, ligou para a namorada. Ela atendeu, falou alô, alô, não ouviu resposta, mas ouviu o som da música e das nossas risadas. Passou horas na espreita, ouvindo tudo, rosnando, com os dentes rilhados, repetindo “ele vai ver, ele vai ver”. No dia seguinte, quando o Degô chegou dando-lhe uma bicotinha de “oi, meu amor”, ela, de cara, no primeiro minuto do primeiro tempo, espetou-lhe uma das perguntas mais assustadoras que uma mulher pode fazer a um homem que sente culpa:
- Onde tu foi ontem à noite?
Aprenda, jovem leitor, se você ainda não passou por certas agruras da vida a dois: quando uma mulher pergunta ao homem onde ele foi ontem à noite, ela JÁ SABE onde ele foi ontem à noite. Portanto, não adianta mentir. O melhor é negociar uma delação premiada, tipo botar a culpa nos amigos (“eles é que me pegaram lá em casa, não pude fazer nada, sabe como eles são...”). Mas o Degô não fez isso, ele tentou sustentar a primeira versão, a do sono restaurador, e se deu mal. Passou a semana inteira ouvindo sermão.
Fora essas contingências, o Doctor Jekyll era uma das melhores aglomerações da cidade. A música era excelente, rock raiz, nada dessas chatonices eletrônicas, rap, funk ou sertanejo. E, à certa altura da madrugada, o DJ fazia o truque do Lulu: metia um “Quando um certo alguém cruzou o seu caminho e mudou a direção”, e era o suficiente para que as mulheres levantassem os bracinhos e cantassem. É lindo quando acontece isso, mas isso só acontece com rock brasileiro, tipo essa do Lulu, ou Camila, Camila, do Nenhum de Nós, ou outras que tais.
Ah, o nosso passado de aglomerações... Bons tempos aqueles, em que as gotículas eram inofensivas e as pessoas até se tocavam. Ainda bem que temos essas antigas jornadas para relembrar.