Para Ler o Pato Donald é o título de um livro lançado nos anos 1970 que só poderia ser lançado nos anos 1970. Tornou-se best-seller entre as esquerdas do mundo inteiro porque, supostamente, “denunciava” as estratégias colonialistas dos personagens da Disney. Segundo os autores, as crianças estavam sendo manipuladas pelos alegres habitantes de Patópolis, que, na verdade, não passavam de pérfidos agentes do capitalismo americano.
É um livro bem articulado, inteligente até e, ao mesmo tempo, tolo, datado, típico da ingenuidade perniciosa da Guerra Fria.
Existe, realmente, uma razão para o imenso e continuado êxito da Disney: é que eles são muito, muito bons. Nenhum outro povo, na história humana, bate os americanos, quando o assunto é entretenimento. Eles conseguiram elevar a diversão à categoria de Grande Arte. E a Disney tem grande participação nessa façanha.
Foi no que pensei, semanas atrás, ao sair do cinema depois de assistir a O Rei Leão. Ia escrever a respeito antes, mas esperei que você também visse o filme.
Viu?
Se viu, deve ter percebido que há uma ideia por trás da história. Talvez não uma ideologia, mas certamente uma ideia, fundamentada nessa realeza leonina. Note: os animais todos, inclusive os elefantes, se inclinam em reverência ao rei leão. Vendo isso, é de se perguntar: por que os animais precisariam de um rei?
Essa história de monarquia foi inventada por nós, humanos, assim que inventamos a civilização. Porque, para vivermos em sociedade, nós não podemos prescindir de regras. Essas regras têm de ser definidas por alguém. Quem? Nos primórdios da civilização, obviamente, o mais forte.
Essa é a lógica da monarquia leonina: o leão é o mais forte entre os animais; logo, é o rei.
Mas, tanto no filme quanto na história da humanidade, o privilégio do mando não pode se basear apenas na força. É indispensável haver alguma legitimidade, porque, se não for assim, sempre surgirá alguém mais forte e tomará a coroa.
A legitimidade, no caso dos reis, é uma espécie de escolha divina. Há uma família destinada a reinar, a coroa passa de pai para filho, como uma herança genética.
Debaixo dessa filosofia, os povos do mundo se submeteram aos reis, até que a Revolução Francesa os dessacralizou. Mas, em meio ao processo de humanização da realeza, deu-se o seguinte: os revolucionários haviam cercado o Palácio de Versalhes, e o rei Luís XVI aceitou receber uma comitiva dos manifestantes para entender o que eles reivindicavam. Então, seis mulheres foram escolhidas entre a multidão e levadas aos aposentos privados do rei. Quando ele apareceu, despertou-lhes uma emoção tão forte, que uma desmaiou a seus pés. Era como se ela estivesse, de fato, diante de uma entidade celestial.
Indivíduos predestinados a reinar sobre os outros só mesmo na ficção, como o rei leão, que foi ungido por um macaco-profeta.
Os reis perderam muito de sua aura mítica, mas o sentimento de que os governantes são seres superiores não se extinguiu. As pessoas têm necessidade de acreditar que alguns políticos são seres iluminados: Bolsonaro é o “mito”, Lula é o “pai dos pobres”, e por aí vai.
Por favor!
Como diria Fernando Pessoa: “Arre!, estou farto de semideuses!”. Até porque eles não existem. Indivíduos predestinados a reinar sobre os outros só mesmo na ficção, como o rei leão, que foi ungido por um macaco-profeta.
Aliás, se você assistiu ao filme, deve ter se surpreendido com uma característica do rei: ele é vegano. No máximo, come uns vermes sem voz nem vontade, que lhe são apresentados por um javali e um suricato.
Pense a respeito. Se você é desconfiado como os autores de Para Ler o Pato Donald, irá questionar as razões subliminares do veganismo do rei leão. E concluirá que ele tinha de ser assim, caso contrário devoraria os próprios súditos. Ora, um rei não pode fazer mal aos próprios súditos, não é? Pense mais um pouco. Pense. Você compreenderá que, na vida real, o leão é carnívoro. E come o javali e o suricato.