Há duas criaturas que você não encontrará soltas e sozinhas nas ruas dos Estados Unidos: criança e cachorro. Quer dizer: criança você até vê, mas nunca em horário escolar. Na hora da escola, criança tem de estar na escola. Cachorro você não verá em horário algum. Não há vira-latas no país de Trump e Megan Fox. Ou, pelo menos, não aqui nessa esquina da Nova Inglaterra.
Outro dia, estava almoçando um clássico espaguete à bolonhesa na cantina toscana do meu amigo Andrea Ferrini e, de repente, estourou certa agitação no lugar. “Chamem a polícia!”, bradavam os americanos, alarmados. “Chamem a polícia!”.
– Que que foi? – perguntei, apreensivo.
– Tem um cachorro solto ali na esquina – respondeu um.
– Hein?
– Um cachorro sem dono! Um cachorro!
– E o que é que tem?
– Chamem a polícia!
E não é que eles chamaram mesmo a polícia? E não é que a polícia veio mesmo? Em menos de cinco minutos, as ruas estavam livres da ameaça.
Esse episódio me fez lembrar de uma entrevista que fizemos com o Lucas Mendes, no Timeline. O Lucas, você sabe, comanda o programa Manhattan Connection e vive há muitos anos em Nova York. Tempos atrás, porém, ele estava cogitando voltar para o Brasil. Foi visitar sua cidade natal, em Minas, e já no primeiro dia viu, vagabundeando pelas ruas, um pequeno vira-lata. A visão daquele cachorro sem dono a passear livremente pela cidade despertou-lhe um sentimento tão melancólico, tão sombrio, foi uma sensação tão ruim, que Lucas desistiu de imediato de retornar à pátria amada idolatrada salve, salve.
O cachorro vira-lata, para o Lucas Mendes, foi a representação do atraso do Terceiro Mundo.
Para mim, representa a glória. Tenho o maior apreço pelo vira-lata. Nelson Rodrigues dizia que nós, brasileiros, sofremos do “complexo de vira-lata”. Isto é: nos sentimos inferiores aos povos de outras nações. Deveria ser o contrário. O complexo de vira-lata deveria ser um complexo de superioridade.
Li, certa feita, em uma revista National Geographic, que o vira-lata brasileiro é o animal mais inteligente do mundo. Sempre soube disso. O vira-lata é o ponto alto da evolução da espécie canina.
Foi um processo lento. Os cachorros, todos eles, descendem de nobres lobos. É que, no tempo em que éramos nômades, as alcateias seguiam os grupos humanos a fim de se alimentarem dos restos de comida deixados para trás. Eis que, em algum belo dia da pré-história, uma loba, sabe-se lá por qual razão, afastou-se dos filhotes, que foram adotados por crianças humanas. Esses filhotes cresceram, cruzaram e se reproduziram, como manda o Senhor. Suas crias nasceram no meio dos homens e a eles se adaptaram.
Não é à toa que se diz que o cachorro é o melhor amigo do homem. Porque ele, cachorro, moldou-se à imagem e semelhança dos seres humanos. O cachorro, na verdade, só existe por causa do homem e só sobrevive entre homens. Se da disputa entre russos e americanos sobrevier a III Guerra Mundial e a raça humana for extinta, os cães estarão sozinhos e, então, ocorrerá o processo inverno: eles voltarão a ser lobos.
O vira-lata é o ponto alto da evolução da espécie canina.
Enquanto isso não acontece, os cachorros evoluem em outra direção: na direção do homem.
Mas nenhum, nenhum!, chegou aonde chegou o vira-lata brasileiro. Ele conhece a mente humana. Ele faz cara de coitadinho para nos comover. Ele não raro nos engana e nos usa, mas também sabe ser leal. Ele é brasileiro até no tipo físico: não é pequeno nem grande, tem em geral a cor do melado e o pelo curto, é ágil e cheio de manhas. O vira-lata é uma raça única, forjada ao relento, encostada às paredes externas dos prédios das nossas cidades, feita de acordo com nossa própria feição. Nós somos vira-latas! Com muito orgulho.
Mas o brasileiro, tristemente, não valoriza suas coisas. As famílias, o que elas querem? Cachorros “de raça”, com pedigree e procedência. Meu amigão Potter, por exemplo, tem um lulu-da-pomerânia. Pode um brasileiro, ainda mais do Alegrete, ser dono de um lulu-da-pomerânia? Não, não pode. O Potter deveria abrigar em sua casa um guaipequinha amarelo, que roesse o osso da costela do churrasco e que uivasse de dor a cada gol levado pelo Inter. Os brasileiros deveriam rechaçar essas raças exógenas, deveriam salvar o vira-lata, essa instituição nacional. Assim, nós os tiraremos das ruas. Restarão apenas as crianças, sem escola, sem cuidados, sem dono. Como vira-latas. Como somos nós.