Quase morri no começo das férias. Detesto experiências de quase morte. Não consigo entender essa gente que pula de paraquedas, escala montanhas, manda Whats para a mulher do traficante e divide bola com o Kannemann. No meu caso, não foi um risco voluntário. Estava dentro do voo 3466 da Latam, de São Paulo para Porto Alegre, o avião já decolando, já no ar, a dezenas de metros do solo, quando, TOW!, ouvimos uma explosão. Foi um estrondo poderoso. Dias depois, li num jornal de Guarulhos que os moradores da cidade se assustaram ao ouvir o barulho.
A Marcinha deu um grito.
O Bernardo se virou para mim com os olhos arregalados:
– O que foi isso, papai?
Eu não sabia. Ninguém sabia. Os passageiros se olhavam, apreensivos. O avião roncava estranho, parecia voar mais baixo do que o normal.
– Que tal a gente voltar? – sugeriu a Marcinha.
Achei graça da singeleza da proposta dela, mas não disse nada. Voamos mais cinco minutos e então, TOW!, TOW!, TOW!, mais três explosões. Uma passageira que estava sentada ao lado da asa direita viu fogo saindo da turbina. Alguns começaram a chorar. A Marcinha e o Bernardo se benzeram. Não havia dúvida: alguma coisa estava muito errada.
Ninguém falava nada. Absolutamente nada. Fiquei observando o comissário de bordo. Ele se amarrou naquela cadeirinha dele e de lá não saiu um segundo. Ficou todo o tempo falando em um telefone pregado à parede, supus que com o piloto.
Aquela dura experiência em comum nos aproximou, tornou-nos cúmplices. Mais um pouco, nos faria amigos.
Continuamos em frente mais uns 15 minutos, o avião meio que tossindo, meio que avançando sem convicção, como se puxasse uma perna. Daria tempo para chegar a Porto Alegre? Neste momento, o piloto falou pela primeira vez. Sua voz saiu grave e pausada, escandindo as sílabas com cuidado:
– Estamos com problemas técnicos. Teremos de voltar para Guarulhos. Pousaremos em cerca de 15 minutos. Está tudo sob controle.
Tudo sob controle, sei. Aquela frase nos deixou apavorados. Era óbvio que ele tentava nos tranquilizar e, se alguém está tentando te tranquilizar, é evidente que há motivos para ficar intranquilo. Ficamos intranquilos. Muito. Curiosamente, ninguém exalou um só suspiro de horror que fosse audível, ninguém gritou, ninguém protestou ou pediu explicações. Nos mantivemos em silêncio total. Quem chorava, chorava baixinho. Quem se lamentava, fazia-o só com o passageiro do lado. Aqueles 15 minutos duraram umas três horas. A aeronave furava as nuvens devagar, não conseguíamos ver nada além do cinza-claro do vapor a um metro das janelinhas. Finalmente, avistamos a cidade lá embaixo. Foi um pequeno alívio, mas agora viria a parte mais perigosa: a aterrissagem. Todo mundo sabe que a aterrissagem é a manobra mais difícil de qualquer avião, que dirá de um que perdeu a turbina. Nos retesamos em nossas poltronas, mas o piloto foi extremamente competente: o pouso foi reto e suave como deve ser uma existência virtuosa.
Quando o trem de pouso tocou o solo, uns aplaudiram, outros se abraçaram, muitos choraram, todos vibramos. Saímos do avião olhando uns para os outros com simpatia, sorrindo, fazendo brincadeiras. Aquela dura experiência em comum nos aproximou, tornou-nos cúmplices. Mais um pouco, nos faria amigos. Horas depois, entramos em outro avião e chegamos em segurança a Porto Alegre. No Salgado Filho, me despedi de alguns de meus companheiros de aventura pensando que não os conhecia, mas gostava deles. Intrigante esse laço que se formou entre nós. Mas compreensível. Porque, se experiências de quase morte são péssimas, sobreviver é glorioso.