O que mais ouvi falar nesta terça-feira, a propósito do Dia da Consciência Negra, foi sobre o sistema de cotas nas universidades brasileiras. Esse assunto ainda faz trepidar o Brasil. Não deveria. Porque, na verdade, trata-se de algo menos importante do que parece.
As cotas não são ruins. Nem são ótimas. Devem existir, mas não deveriam.
As cotas são o analgésico. Se você sofre de alguma doença importante e ela lhe causa dor, você combate a dor com o analgésico, mas, para combater a doença, haverá de lançar mão de um tratamento mais sério. As cotas e o analgésico atacam o sintoma, não o mal em si.
Escolas públicas de primeiríssimo nível garantem futuro digno a todas as crianças, sejam quais forem suas origens.
O mal em si foi causado pela escravidão, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Meu filho agora está estudando sobre a escravidão nos Estados Unidos. Depois de cada aula, ele sai da escola horrorizado.
– Como pessoas puderam fazer isso com outras pessoas? – pergunta. – Como?
Pois é. Como?
Os americanos tentam de todas as formas se redimir desse pecado. Um exemplo prosaico: a escola do meu filho chamava-se Edward Devotion. Essa família, Devotion, tinha, em meados do século 17, uma fazenda no terreno onde hoje se ergue a escola. Mais tarde, Edward doou o lugar para que a escola fosse construída e a financiou e incentivou. A casa em que ele morava, amarelinha, de madeira, ainda está plantada no jardim que fica na parte frontal do prédio.
Bem. Tempos atrás, os bostonianos descobriram que Edward Devotion tinha um escravo. Eu escrevi UM escravo. Lembre-se de que Thomas Jefferson, um dos pais da pátria, teve mais de 200. E Thomas Jefferson foi o homem que escreveu na Declaração de Independência uma das mais célebres frases da história, uma legenda da igualdade e da liberdade:
"Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade".
Essa afirmação de Jefferson é completamente incompatível com a escravidão, mas ele tinha 200 cativos. Edward Devotion, apenas um. Está certo, concordo, não é a quantidade que importa, é o ato em si – repulsivo, abominável. Mas, quando você vai analisar os atos de um homem, é preciso levar em consideração o contexto. No século 19, um homem que tivesse um servo não era necessariamente um homem mau.
Neste caso, os americanos não levaram em consideração o contexto. Decidiram mudar o nome da escola. Essa é uma das formas que eles encontram de se redimir da escravidão. A outra é o sistema de cotas que ainda existe em muitos lugares, embora esteja diminuindo bastante.
No entanto, a verdadeira redenção, o remédio que de fato vai curar o mal, não é o paliativo da cota. Nem nos Estados Unidos, nem no Brasil. É a educação básica.
Escolas públicas de primeiríssimo nível garantem futuro digno a todas as crianças, sejam quais forem suas origens.
Nenhum país se torna verdadeiramente justo sem escola pública de qualidade.
Escola pública de qualidade iguala pobres e ricos, brancos e negros. E dá, a uma nação consciente, a chance de pagar pelos seus piores pecados.