O dia 13 de maio, escolhido pela historiografia oficial como símbolo da liberdade, representa apenas o término de um longevo sistema escravocrata de quase 400 anos. Há 130 anos, o Brasil foi o último país no Ocidente a abolir a escravidão. Em contraponto a esta data, na qual foi assinada a Lei Áurea (1888), o 20 de Novembro – Dia da Consciência Negra – remete-nos à morte de Zumbi dos Palmares (1655-1695), cuja data encontrou maior receptividade pela população afrodescendente diante da luta deste líder contra a escravidão. Zumbi liderou o famoso Quilombo dos Palmares, que se localizava na Serra da Barriga, no atual Estado de Alagoas.
Instituído em âmbito nacional, mediante a Lei 12.519, de 10 de novembro de 2011, o dia 20 de novembro passou a ter um caráter oficial graças à mobilização do Movimento Negro e à liderança do ativista gaúcho, poeta e professor Oliveira Silveira (1941-2009), que teve a iniciativa, junto a outras lideranças, de propor o reconhecimento do africano Zumbi como um ícone da luta contra a escravidão no Brasil.
Embora não seja nacional, o 20 de Novembro, na esfera municipal, ocorre em inúmeras cidades. Já em âmbito estadual, apenas em seis Estados: Alagoas, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Roraima. O empenho do professor Oliveira em consultar uma bibliografia abalizada sobre a data da morte de Zumbi dos Palmares, além de realizar exaustiva pesquisa documental, motivou, em 1978, o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU) a realizar, em Salvador, na Bahia, um congresso. Neste encontro, o 20 de Novembro foi eleito como o Dia Nacional da Consciência Negra, cujo nome foi sugestão do ativista Paulo Roberto dos Santos, o Paulão, falecido em 2013.
Na realidade, a abolição da escravatura, em 1888, concedeu, juridicamente, a liberdade ao escravizado, mas não o passaporte para a plena cidadania. Infelizmente, a essa população liberta, restaram apenas a pobreza, a falta de instrução, o preconceito e a invisibilidade social. É evidente que, neste contexto, a sobrevivência do liberto ficou restrita a espaços cuja característica principal era a baixa renda econômica – a exemplo, em Porto Alegre, da Colônia Africana, da Ilhota, do Areal da Baronesa e do Mont’Serrat. Considerados no passado territórios negros, estes locais foram o berço do samba, dos blocos de Carnaval e das casas de religião de matriz africana (Nação). A especulação imobiliária, principalmente a partir dos anos 1960, atropelou a tradição africana ali presente, deslocando seus moradores para áreas distantes da urbe, como a Restinga Velha.
Abolição: um processo inacabado
Os afrodescendentes ainda enfrentam uma luta constante contra o preconceito, visando ao reconhecimento do legado dos seus ancestrais e descendentes na construção da nação brasileira. Marginalização e racismo são reflexos de um sistema escravocrata que, durante séculos, estruturou de uma maneira dual a sociedade brasileira. A saída estratégica da nossa elite conservadora e escravocrata do século 19 deu-se com o fim da escravidão de forma legal, porém, sem alterar a estrutura social da qual era apenas o espelho. A sociedade se adaptou, preservando, sob a aparência jurídica de igualdade de todos perante a lei, a distinção social entre a casa grande e a senzala.
A abolição da escravatura não seria um processo inacabado, como afirma o historiador Décio Freitas (1922-2004), em seu livro Brasil Inconcluso (1986), se ao ato jurídico fossem acrescidas mudanças sociais como a reforma agrária – proposta pelo engenheiro e abolicionista André Rebouças (1838-1898) – e a implantação de um sistema educacional amplo e inclusivo.
Desde a assinatura da Lei Áurea, pela princesa Isabel (1846-1921), até os dias atuais, os afrodescendentes enfrentam o racismo (velado ou assumido) e a intolerância às tradições africanas, embora exista a Lei Afonso Arinos (1951), que considera o racismo uma contravenção penal. Em pleno século 21, a escravidão, em suas diversas formas, ainda nos espreita e reinventa-se por meio de mecanismos de exploração, subtraindo a liberdade e a dignidade do ser humano.
O alto percentual de afrodescendentes que buscam ocupar, de forma legítima, espaços de poder e de atuação junto à sociedade que, tradicionalmente e de forma majoritária, são ocupados por brancos, de acordo com os dados estatísticos do IBGE, é o reflexo de uma abolição inconclusa. O dia 20 de novembro é sempre uma boa oportunidade para uma reflexão acerca da nossa diversidade cultural, que é fruto da contribuição multirracial, especialmente dos nossos irmãos africanos e de seus descendentes.
Colaboração de Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite, pesquisador e coordenador do setor de imprensa do Museu da Comunicação HJC