O que significa ser negro no Brasil hoje? Com a aproximação do Dia da Consciência Negra, GaúchaZH convidou quatro pessoas a escrever a partir dessa questão. A seguir, confira o texto de Paulo Scott. Leia também os de Jeferson Tenório, Lisiane Lemos e Loma Pereira.
Por Paulo Scott
Escritor, autor de, entre outros, “Ithaca Road” (2013) e “O Ano em que Vivi de Literatura” (2015)
Por conta da história que estou terminando de escrever sobre uma família negra moradora da zona oeste de Porto Alegre, uma família de pessoas emancipadas que, pela sua boa condição socioeconômica, conseguiu se blindar contra a lógica e os efeitos do racismo e, assim, afirmar sua dignidade em um contexto social que oferece privilégios a alguns e nega direitos básicos a outros em razão da cor da pele, passei cinco anos imerso em pesquisas e leituras de estudos e relatos, sobretudo relatos de ativistas negros, relacionados à luta contra o racismo no Brasil.
Mesmo não tendo fenótipo que, aos olhos de alguns, me leve a ser identificado como negro – considerando que negros são os pretos e os pardos –, sou negro (minha identidade étnica é negra) e me sinto representado pelas pautas e reivindicações encampadas pelos movimentos negros. Meu pai, é preciso esclarecer, tem a pele escura e traços fenotípicos negros, o mesmo acontece com o meu irmão caçula; minhas características fenotípicas distintas das características deles não afastam minha condição essencial de indivíduo negro.
Nesse quadro familiar, mesmo considerando o fato de minha mãe ter pele clara, não me parece admissível que eu pudesse me identificar como branco, como sendo uma pessoa branca. Para além da repercussão afetiva, trata-se de um posicionamento político incontornável.
Essa ausência de receio de se afirmar como negro, que não é isolada, pelo contrário, é crescente e afeta um grande número de mestiços, é, hoje, no Brasil, apenas uma das várias demonstrações do quanto a comunidade preta e parda, a comunidade negra, já não se deixa oprimir pela lógica que, por décadas, desde a pretensa abolição da escravatura, tem levado brasileiros a não assumirem sua herança negra e, por consequência, não se assumirem como negros.
Vivemos um momento inédito na história do Brasil. Nunca se viram tantas formulações, de cunho político, de natureza acadêmica, de reverberação econômica, de extensa dimensão cultural, em torno da busca pela superação do racismo – nunca é demais lembrar que, até a década de 1990, o discurso hegemônico era o de não haver racismo em nosso país –, e isso gera desdobramentos sociopolíticos poderosos.
PAULO SCOTT
Escritor
Vivemos um momento inédito na história do Brasil. Nunca se viram tantas formulações, de cunho político, de natureza acadêmica, de reverberação econômica, de extensa dimensão cultural, em torno da busca pela superação do racismo – nunca é demais lembrar que, até a década de 1990, o discurso hegemônico era o de não haver racismo em nosso país –, e isso gera desdobramentos sociopolíticos poderosos. Nesse sentido, o rap produzido nas periferias das capitais, os canais de jovens negros no YouTube e as ações afirmativas governamentais nas universidades, entre outros, surgiram como fatores decisivos para que ocorresse uma virada de postura.
Em linhas gerais, pode-se afirmar que, nos dias hoje, ser negro no Brasil é estar apto a um enfrentamento aberto, no âmbito do discurso acadêmico, no âmbito da linguagem social, no âmbito da política, no âmbito do combate à criminalidade, como não era possível em tempos anteriores, contra visões conservadoras que, na sua ideologia, se sentem confortáveis com a afirmação de que lugar de negro é na excepcionalidade do bem-estar e continuar na constrangedora posição de figurante.
Ser negro no Brasil de hoje é conseguir abandonar o desejo de fazer parte do clube do branco, é buscar uma identidade que lhe foi retirada, aniquilada sem piedade, no processo mercantil de tráfico de escravizados através do oceano, prática admitida pelo Estado até as últimas décadas do século 19.
Por mais seguro que eu estivesse da minha compreensão geral acerca das desigualdades sociais do país, da minha identidade étnica, por mais consciente e engajado que eu me considerasse quando iniciei a escrita do livro que referi no início deste texto, a força da leitura concentrada de obras de intelectuais negros como, por exemplo, Achille Mbembe, Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo, Jessé de Souza, Milton Santos e Ricardo Aleixo, me fizeram enxergar bem melhor a cruel dimensão do preconceito racial hoje em nosso país, e me fizeram compreender também a dimensão da força das novas vozes que vêm dissipando, em ritmo importante, essa doença social que é o racismo.
Nessas vozes, tenho dever de anotar, estão, sobretudo, as mulheres negras presentes nos espaços acadêmicos estabelecendo panoramas nos quais se explicitam as perversidades da cretina tese da meritocracia, do colorismo, do machismo. São vozes que trazem esperança.
Durante muito tempo, o brasileiro temeu falar sobre o racismo como se está falando hoje. As novas gerações, apesar da manutenção de estatísticas nas quais os negros continuam sendo tratados como sub-humanos, lidam melhor com o temor de ser negro, vencem-no como antes não era possível vencer, vencem-no em um espaço que não poderá ser perdido, e isso é bom e, em parte, é o que reflete, hoje, ser negro neste país.