O que significa ser negro no Brasil hoje? Com a aproximação do Dia da Consciência Negra, GaúchaZH convidou quatro pessoas a escrever a partir dessa questão. A seguir, confira o texto de Jeferson Tenório. Leia também os de Lisiane Lemos, Loma Pereira e Paulo Scott.
Por Jeferson Tenório
Professor de literatura, doutorando em teoria literária pela PUCRS, escritor e autor do romance “Estela Sem Deus” (2018).
Não éramos negros. Os primeiros registros do substantivo “negro” para designar pessoas de origem africana estão datados entre o século 16 e 17. No entanto, é a partir do século 18, no auge do iluminismo e do processo escravagista, que a palavra toma forma, não apenas para designar pessoas africanas, mas para transformar seres humanos em produtos. Essa reflexão pertence ao historiador camaronês Achille Mbembe, autor de Crítica da Razão Negra. Mbembe é um dos mais importantes pensadores da atualidade não só por tratar de questões raciais, mas também por oferecer um diagnóstico muito preciso sobre para onde a humanidade está caminhando.
Mbembe analisa que o movimento iluminista do século 18 trouxe importantes demandas para humanizar as relações. Foi o século de Montesquieu, com o livro O Espírito das Leis (obra que serviu de base para a Declaração dos Direitos Humanos), século de Kant, Rosseau, Voltaire e a Revolução Francesa. Época de pensadores e movimentos cruciais para constituição de um mundo com mais igualdade. No entanto, ao definir o que é humano, e quem é humano, o movimento iluminista jamais levou em consideração os povos africanos. O conceito de humanidade, portanto, pertencia a um grupo muito específico de pessoas. A saber: europeus e brancos.
Ora, e quem não pertencia a esse seleto grupo? Resposta: não eram humanos. Eram apenas negros. Essa era lógica. Seres humanos de origem africana transformados em corpos de extração, exploração e moeda de troca. Fomos nomeados como negros e passamos a sê-lo. Não somente como substantivo, mas como conceito e argumento que permitia manter corpos escuros presos, primeiro por grilhões, e depois, atados eternamente à cor da pele.
De lá para cá, toda a violência que a designação da palavra “negro” trouxe consigo resultou em três processos para os negros: assimilação, interiorização e subversão. Esse último processo diz respeito às lutas contra o racismo que se estenderam por séculos e séculos. Passaram pelo desmantelamento de segregações raciais e por algumas iniciativas de reparações históricas.
Há um manual oculto dos olhos, mas presente nas falas de nossas mães: se a polícia te abordar, não faça movimentos bruscos. Não corra à noite. Seja discreto. O mundo branco não permite que negros chamem muito a atenção.
JEFERSON TENÓRIO
Professor de Literatura
No Brasil, as parcas políticas de reparação não conseguiram restituir a dignidade humana a grande parte da população negra. Os negros ainda são os que mais morrem por armas de fogo, são os que mais sofrem com o desemprego, são os que menos têm acesso à educação e à saúde de qualidade.
“O humanismo está terminando”, decretou Achille Mbembe. E ele tem razão. O mundo está sendo engolido pelo capitalismo liberal, um modelo incompatível com a democracia. Entramos na era da hiperexploração. Regredimos ao pensamento escravagista. Os corpos negros voltaram a ser vistos como meros produtos, comparados a arrobas de bois. Corpos negros servem apenas se puderem dar lucro.
Creio que a melhor definição para a condição negra no Brasil tenha vindo da cantora Ellen Oléria, num recente show em São Paulo. Ellen, além de ter uma voz lírica e potente, também foi vencedora da primeira edição do The Voice Brasil. Em dado momento do show, Ellen, que é negra, deu o tom político de sua apresentação: “Cêis tão com medo disso aí tudo que está acontecendo? Então cola com a gente, cola com a gente que há séculos nós (os negros) conhecemos a tecnologia da sobrevivência”.
Talvez nessa frase esteja contida a síntese da condição negra no Brasil. As técnicas de sobrevivência num país tão desigual quanto o nosso foram herdadas dos nossos ancestrais. Nossa conduta para lidar com a violência não vem de hoje. Fomos educados em casa e na rua. Há um manual oculto dos olhos, mas presente nas falas de nossas mães: se a polícia te abordar, não faça movimentos bruscos. Não corra à noite. Não saia sem documentos. Não chame a atenção. Não fale alto. Seja discreto. O mundo branco não permite que negros chamem muito a atenção.
Entretanto, há dias em que não queremos ser negros. E isso nada tem a ver com negar nossa origem. Há dias que simplesmente não queremos ser nomeados como negros. A luta diária nos cansa. Há dias em que preferimos não pensar que temos uma cor. Há dias em que pensamos apenas em reencontrar a humanidade suspendida. Recuperar a subjetividade roubada e o direito de existir. Mas sabemos que não é assim. Pois não há como baixar a guarda. O corpo negro é sempre um corpo em risco.
A sociedade brasileira ainda não compreendeu que o problema racial não é um problema dos negros. O racismo é um problema de todos. Negros e brancos. Precisamos reconhecer que não herdamos apenas a desigualdade, mas um modelo de exploração e violência baseado somente pela cor da pele.