O que significa ser negro no Brasil hoje? Com a aproximação do Dia da Consciência Negra, GaúchaZH convidou quatro pessoas a escrever a partir dessa questão. A seguir, confira o texto de Lisiane Lemos. Leia também os de Jeferson Tenório, Loma Pereira e Paulo Scott.
Por Lisiane Lemos
Advogada e executiva de tecnologia, reconhecida pela revista Forbes como uma das jovens que fazem a diferença no Brasil e premiada pelo Mipad/ONU como uma das cem pessoas negras mais influentes no mundo
Dezoito por cento, ou 1,2 milhão de pessoas: essa é a população negra do Rio Grande do Sul. Desse universo saiu a pessoa que te escreve, nascida, criada e moldada em Pelotas, formada na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e torcedora do Brasil de Pelotas. Acho que já deu para ver que eu tenho orgulho de ser de... Pelotas. Sou uma exceção, e pode parecer arrogante me autointitular assim, mas é minha forma de deixar claro que não é porque eu consegui que qualquer pessoa consegue. As oportunidades têm de encontrar as pessoas para que a mudança aconteça, e é por isso que eu preciso da tua ajuda, e até o final do texto tu vais entender como.
Saí do Rio Grande do Sul há pouco menos de cinco anos, ou seja, 80% da minha história foi escrita neste Estado, por isso é importante compartilhar como foi me reconhecer como uma pessoa negra e como essa jornada me influencia no que eu sou hoje. Foi nos bancos escolares que ouvi e cantei pela primeira vez: povo que não tem virtude acaba por ser escravo! E depois observei livros que insistentemente apresentavam pessoas negras como escravos ótimos para trabalhos braçais.
Como uma criança constrói uma autoestima em um ambiente que a retrata como diferente, anormal, descendente dos sem virtude? No meu caso, primeiro eu fiquei envergonhada... Depois analisei e me opus a essa história de forma crítica.
Para construir essa negritude de hoje, muito teve de ser pavimentado. E aqui agradeço a meus ancestrais, que nas charqueadas pelotenses foram punidos por simplesmente desejar liberdade, agradeço aos clubes sociais negros que foram espaços de resistência e a tantos outros que escreveram esse passado.
Essas pessoas sofreram muito para que hoje eu pudesse escrever tranquilamente sobre a minha insatisfação em enxergar empresas monocromáticas, com pessoas do mesmo gênero, da mesma idade, das mesmas cidades e das mesmas universidades.
Povo que não tem virtude acaba por ser escravo. Como uma criança constrói uma autoestima em um ambiente que a retrata como descendente dos sem virtude?
LISIANE LEMOS
Executiva de tecnologia
A minha própria diferença é o combustível da minha insatisfação. Ser uma mulher negra é desafiar as estatísticas. Nós morremos mais, ficamos mais doentes, ganhamos menos, sofremos mais violência, nós somos ensinadas desde cedo não a viver, mas a sobreviver.
E como viver essa história com novos significados? Questionando. No meu caso, questionando a invisibilidade de profissionais negros no mercado corporativo. Estou trilhando um caminho que até há pouco tempo não tinha visto alguém trilhar, considerando que conheci o primeiro executivo negro apenas aos 23 anos de idade.
É duro deparar com uma sociedade que entende que diversidade traz lucratividade e inovação, mas ao mesmo tempo não está disposta a investir a energia necessária para se transformar, porque demora, e caminhos desconhecidos normalmente não são fáceis.
É difícil sentar, em um evento, e escutar o quanto estamos avançando em políticas de igualdade, mas não enxergar uma mulher negra executiva falando, porque somos apenas 0,4% nas maiores empresas deste país. É desafiador sonhar em um cenário desses. Mas a realidade é desafiadora desde que o primeiro navio negreiro aportou por aqui.
Meu pedido, para ti, é empatia. Que sejamos o novo movimento das camélias, usando dos nossos privilégios para criar igualdade, que nos libertemos do tradicional, do que nos torna uniformes e sem criatividade. Que cresçamos criando novos espaços, novas vagas. Não há que se tirar o lugar de quem já está. Que desafiemos o status: por que não mentorar um profissional negro com potencial de liderança? Por que não mudar a política de contratações? Por que não dialogar abertamente com quem toma as decisões? Por que não questionar? Por que não ser o primeiro?
A meu ver, o Mês da Consciência Negra é um mês de reflexão e de ação. E não só de pessoas negras, mas para que estas possam ocupar um espaço igual nos cargos de liderança e nos espaços de mudança. Para que possam compartilhar o poder. Para que possam ter liberdade de ser e crescer. É hora de agir!