A polêmica em torno da política de cotas raciais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ganhou um novo capítulo, desta vez envolvendo as regras para verificar se os alunos que se declararam negros no último vestibular realmente têm direito às vagas. Alguns integrantes têm deixado a comissão de verificação por não concordarem com as novas determinações – que dizem que o aluno poderá ser considerado negro e ingressar como cotista caso apresente documentação demonstrando que pais ou avós eram pretos ou pardos. Gleidson Renato Martins Dias, que fez parte da comissão que elaborou o método de verificação da UFRGS, conversou com GaúchaZH:
Por que estão acontecendo pedidos de desligamento na comissão de verificação dos cotistas?
Porque a UFRGS está retroagindo de forma absurda, fragilizando, inclusive juridicamente, a possibilidade de controle da política de cotas raciais. Esses membros da comissão se reuniram conosco, do Fórum Nacional de Comissões de Heteroidentificação, e achou-se que era melhor se retirar do que compactuar com o que foi apresentado. Fiz parte da comissão que elaborou o método de verificação da UFRGS, representando o Movimento Negro Unificado, e passei nove meses conversando, lendo, estudando a jurisprudência. E tudo o que a gente construiu, elaborou, estudou, de uma hora para outra eles rasgaram. Ficou difícil.
Que mudanças vocês consideram que não são adequadas?
Há vários problemas. Vou pontuar os piores. Primeiro, criaram um conceito de pardo indígena, coisa inexistente e desrespeitosa para todo os indígena, que já está contemplado nas cotas. O conceito pardo não está relacionado ao indígena, está relacionado à pessoa negra. Em segundo lugar, tiraram o foco nacional. A Escola Nacional de Administração Pública fez um seminário em setembro, em Brasília, com vários juristas, e nós entendemos que o critério é o fenótipo, ou seja, ter características físicas negroides. A UFRGS alterou isso. Quer que a pessoa entre por cotas por ter pai ou avô negro, ou seja, qualquer pessoa, um ancestral de quem a pessoa nem se lembra e com a qual nunca falou. A cota é para a pessoa, não é para o teu irmão, para o teu pai, para o teu avô.
Vocês acreditam que, com o que foi estabelecido, fica difícil excluir alguém por ter cometido fraude?
É exatamente isso. Primeiro, criaram duas comissões distintas. Tem a comissão que faz a heteroidentificação, ou seja, vê a pessoa. Digamos que chega um branco de olho azul. Obviamente, a comissão indefere. Daí essa pessoa entra com recurso, é outra comissão, são outras pessoas, que não vão fazer análise presencial, somente documental, tendo de aceitar até os avós. Acaba com as cotas raciais. O STF, quando analisou as cotas, usou o termo heteroidentificação, por isso o nosso fórum é de comissões que fazem heteroidentificação. A heteroidentificação significa identificação por outra pessoa, não tem a ver com autodeclaração, que faz parte do direito subjetivo, de entender que se pertence a qualquer coisa. Uma coisa é como eu me sinto, outra coisa é como a sociedade me vê. A pessoa branca, que com toda a boa vontade possa se sentir pertencente à comunidade negra, não será da comunidade negra e não será tratada como negra pela sociedade. Entendendo isso, as cotas raciais utilizaram o critério da fenotipia. O Ministério do Planejamento, em nível federal, estipulou uma instrução normativa que diz exatamente isso, que o critério a ser utilizado é somente o fenotípico.
Vocês entendem que a avaliação do fenótipo da comissão de heteroidentificação se torna irrelevante quando o caso vai para a instância recursal?
Exatamente. E tem outro problema, mais perigoso. Além de tudo, a portaria estipula que quem irá se posicionar, dar a fala final, é o reitor. Ou seja, não é mais análise técnica, é política.
Como vocês avaliam a postura da universidade?
Nós achamos três coisas. Primeiro, foi uma traição. Por que é traição? Porque nós discutidos pormenorizadamente durante nove meses e eles apresentaram uma coisa completamente diferente. Depois, é irresponsabilidade, porque eles não estão entendendo que as cotas não são da UFRGS, as cotas estão na UFRGS. A UFRGS não é uma ilha fora do Estado democrático de direito brasileiro. Ela faz parte da administração pública e não pode criar algo diverso de tudo que a administração pública tem construído. Por último, achamos que o resultado disso é o que chamamos de racismo epistemológico. A universidade não entendeu que existe a chamada autoridade epistemológica para discutir determinados assuntos. Quem vai falar sobre isso são os teóricos, inclusive brancos, que sempre estudaram na academia racismo e antirracismo. O que a universidade está fazendo é dar uma chibatada nas cotas raciais.
Quantas pessoas pediram o desligamento da comissão de aferição?
O pessoal que faz a heteroidentificação descobriu que o reitor deu ordem de aceitar em recurso até os avós e se reuniu nesta semana. Concluíram que isso acaba com o trabalho deles. E deixaram as comissões. De 17 pessoas, 10 já saíram. Quem ficou foram professores e servidores, mas continuamos conversando com eles.