A polêmica em torno da política de cotas raciais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ganhou um novo capítulo, desta vez envolvendo as regras para verificar se os alunos que se declararam negros no último vestibular realmente têm direito às vagas.
Em portarias publicadas em fevereiro, a UFRGS estabeleceu critérios para avaliar os candidatos que entrarem com recursos, depois de terem sua autodeclaração rechaçada na Comissão Permanente de Verificação da Autodeclaração Étnico-Racial, onde é analisado o fenótipo – ou seja, se a pessoa tem características físicas negroides.
O principal ponto da discórdia é que, com o novo regramento, o aluno poderá ser considerado negro e ingressar como cotista caso apresente documentação demonstrando que pais ou avós eram pretos ou pardos (que formam o grupo negro). A norma aparece no artigo primeiro da portaria 937, segundo a qual "o recurso deverá conter exposição fundamentada e documentada, inclusive com fotos devidamente legendadas, caso disponíveis, considerando a ascendência fenotípica até a geração dos avós".
Para integrantes do movimento negro, a normativa significa um golpe mortal na política de cotas da UFRGS e uma porteira aberta para as fraudes. A partir da publicação das portarias, integrantes da comissão de verificação da autodeclaração, que analisa o fenótipo, pediram o seu desligamento. Dez dos 17 membros teriam se afastado, por considerar que a nova regra torna o trabalho da comissão inócuo.
Um dos que se afastaram é o estudante de administração pública e social Cilas Machado. Ele afirma que foi surpreendido pela atitude da universidade:
— A comissão trabalhou durante o mês de fevereiro todo, fizemos as aferições do vestibular e do Sisu. As normativas da UFRGS eram progressistas, achávamos que iríamos realmente coibir as fraudes. Daí vieram as portarias que, sem possibilidade de diálogo, alteraram basicamente um ano e meio de trabalho e discussões. A primeira comissão, da qual pedimos desligamento, fazia a análise fenotípica, se a pessoa é lida, socialmente, como negra. Esse procedimento foi fragilizado, porque agora quem tiver um avô negro, independentemente de a relação com esse avô ser próxima ou não, vai ser cotista racial. A UFRGS passou a considerar a "ascendência fenotípica", um conceito que eu nunca vi, uma alquimia jurídica que eles estão fazendo. Num país como o nosso, em que qualquer pessoa tem um avô ou avó negra, todo mundo poderá ser cotista. Entendemos que, se é para considerar qualquer um cotista racial, não faz sentido existir a comissão de que fazíamos parte. O trabalho fica nulo.
O debate sobre fraudes na UFRGS explodiu no ano passado, quando coletivos ligados ao movimento negro denunciaram cerca de 400 alunos que ingressaram como cotistas mas seria brancos. A universidade passou a investigá-los e, para 2018, estabeleceu a comissão permanente para verificar as autodeclarações dos aprovados no vestibular. Ficou definido que cada candidato seria submetido a um comitê formado por pelo menos três integrantes. A avaliação seria silenciosa, baseada apenas no fenótipo, pelo entendimento de o preconceito racial é sofrido por quem tem características físicas negras. Também ficou definido que, caso discordasse do parecer, o candidato teria direito a recurso administrativo.
As regras para esse recurso é que causaram desagrado em integrantes do movimento negro. A servidora Vera Rosane Rodrigues de Oliveira, outras das pessoas que se desligaram da comissão de verificação, diz que as normas estabelecidas colocaram por terra o trabalho de aferição do fenótipo.
— Optamos por nos desligar da comissão, porque se desrespeitou todo um processo coletivo que vinha sendo construído dentro da universidade. A regra recursal permite que pessoas que não têm direito ingressem na UFRGS como cotistas — critica.
O reitor, Rui Oppermann, afirma que as regras criadas pela universidade estão de acordo com a legislação, que o objetivo é garantir que as cotas sejam destinadas a quem tem direito e que espera esclarecer a controvérsia internamente, pela via do diálogo.
— Estamos num processo de aperfeiçoamento dessa questão. Entendemos que esse processo vai ter momentos como o que estamos passando agora, em que há necessidade de diálogo e esclarecimento — afirmou.