O pior da pobreza nem é tanto a escassez. Até porque a escassez é a gasolina da criatividade. O problema da pobreza é quando ela nos transforma em mesquinhos. Ou, para usar um termo mais popular, em muquiranas.
Quando a pobreza nos transforma em muquiranas, ela, a pobreza, não é mais incentivo para lutar, para fazer, para crescer; ela é desculpa para se acomodar, para não fazer, para degenerar.
A destruição do Museu Nacional é só uma pontinha do imenso iceberg de muquiranagem que faz o Brasil naufragar.
É isso: a muquiranagem traz degeneração.
O Brasil é um país rico, com grande parte da população pobre. Um problema grave, mas que poderia ser resolvido, não fosse a nossa densa, robusta, oceânica muquiranagem.
A destruição do Museu Nacional é só uma pontinha do imenso iceberg de muquiranagem que faz o Brasil naufragar.
Você prestou atenção nas análises dos políticos sobre o incêndio no museu? Um atira a culpa no colo do outro. Oportunistas. Há relatos de que a direção do museu alertava acerca dos riscos de incêndio desde 2004. A lógica é clara: se os problemas foram constatados em 2004, deviam estar ocorrendo desde muito antes. Uma crise estrutural não é criada de um ano para outro. Assim como a atual crise econômica não pode ser atribuída ao governo Temer, o descaso com o Museu Nacional não começou no governo Lula. Pode-se recuar, no mínimo, até Fernando Henrique. No mínimo. Logo, todos, de lá para cá, têm responsabilidades: Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer.
Mas seria simples se o problema estivesse apenas nos governos. Não está. Está abaixo deles, espalhado pela planície do país inteiro. Talvez esteja, inclusive, em você que me lê.
Observe a muquiranagem local: observe Porto Alegre, uma das cidades mais muquiranas do mundo, quando o assunto não é o futebol.
O centro de Porto Alegre é belíssimo, é um museu arquitetônico a céu aberto, digno de qualquer capital europeia. Mas prédios históricos estão pichados, sujos, malconservados. A Rua da Praia, a via mais importante do Rio Grande do Sul, foi tomada por camelôs e grotescos contêineres de lixo. O lindíssimo Viaduto da Borges, não faz muito, foi transformado em favela. A Brigada retirou os ocupantes à força. Sobraram sujeira e pichação. Há gente morando nas ruas, ocupando espaços públicos ou prédios abandonados.
Tudo isso poderia ser considerado efeito da pobreza. Não é. É da muquiranagem. Porque, quando as autoridades removem um grupo de sem-teto de um local público, não estão fazendo mal aos pobres: estão fazendo bem. Pois quando as pessoas são impedidas de frequentar uma praça ou qualquer outra área pública, como os baixos do Viaduto da Borges, quando elas preferem se homiziar em casa do que sair à rua, a cidade vai morrendo aos poucos. A circulação de pessoas, para uma cidade, é como a circulação de sangue para as pessoas. A cidade vive disso, desse movimento.
Vou dar um exemplo concreto: a Arena do Grêmio. O Grêmio erigiu sua Arena em um bairro paupérrimo, o Humaitá, e foi o que bastou para que a mudança se iniciasse. Você já viu o que acontece lá, nos dias de jogos? Casas foram alugadas e até compradas para servirem de pontos de concentração dos torcedores, onde eles fazem churrasco antes das partidas. Pequenos bares foram montados em casinhas de madeira. Espaços são locados como estacionamento. Há toda uma economia girando em torno da Arena do Grêmio, sem qualquer ajuda do poder público. Por que isso aconteceu? Porque, pelo menos uma vez por semana, milhares de pessoas se deslocam para lá, e as pessoas precisam comer e beber, as pessoas querem se divertir, sentar para conversar, ouvir música, querem encontrar um local para estacionar seus carros, abastecê-los, às vezes lavá-los, querem comprar uma bandeira do seu time ou uma faixa de campeão. Onde há pessoas, há vida, há consumo, há progresso, há empregos.
Quando uma cidade preserva suas praças, seus prédios e suas ruas, mesmo que tenha de ser dura com eventuais sem-teto ou vendedores ambulantes ou mendigos, quando uma cidade faz isso, ela funciona para todos os cidadãos. Ela incentiva seu próprio desenvolvimento.
Mas quero falar especificamente no museu e na muquiranagem que fez com que fosse comido pelas chamas. Na próxima coluna.