Os veganos que me desculpem, mas foi o bife que mudou a História, e não a alface ou o grão-de-bico. Uma das mudanças ocorreu quando os turcos otomanos tomaram Constantinopla e fecharam a passagem da Europa para a Índia.
Ora, na Índia os europeus adquiriam as especiarias, que nada mais eram do que temperos, como a pimenta-do-reino. Esses temperos eram valiosos exatamente porque, com eles, os cozinheiros do Velho Mundo disfarçavam o sabor da carne, que apodrecia muito rapidamente naquele tempo sem geladeiras e freezers. Assim, ansiosos por um bom rahmschnitzel ou um filé à parmegiana, os europeus jogaram-se ao mar atrás de um caminho que os levasse às especiarias e acabaram descobrindo, entre tantas novidades, a América. Ou seja: nós.
Naquele tempo, os marinheiros eram, quase todos, ex-escravos ou filhos de escravos. Quando cometiam algum erro, a punição era crudelíssima.
Foi também por causa da carne podre, tão podre, que nem temperos a salvavam, que os marinheiros do Encouraçado Potemkin se amotinaram, em 1905, no porto de Odessa. Os comandantes do navio diziam que a carne que seria servida no almoço dos marinheiros estava em condições de consumo, desde que lavada com vinagre. Os marujos apontavam para os vermes que saíam dos bifes e avisavam que não iam comer aquilo. Come, não come, come, não come, os marinheiros se rebelaram e quase derrubaram o governo do czar, antecipando a revolução que viria 12 anos mais tarde.
Foi essa revolta que Serguei Eisenstein tentou reproduzir em um filme que entrou para a história do cinema, O Encouraçado Potemkin. Era um filme mudo, mas muito eloquente. Sua cena mais famosa é a do massacre da Escadaria de Odessa, que já mereceu referência em vários outros filmes, inclusive Os Intocáveis, de Brian de Palma. Você se lembra do carrinho de bebê que desce sozinho as escadarias da estação de metrô de Chicago durante um tiroteio? Pois é. Vem do Encouraçado.
A rebelião do Encouraçado Potemkin foi tão dramática, que abalou não só a Rússia: abalou o Brasil. Cinco anos depois, em 1910, marujos brasileiros sublevaram-se contra os maus-tratos que sofriam nos navios da Marinha e, como os russos, quase derrubaram o governo. Chegaram a bombardear a cidade do Rio de Janeiro, que era a capital do país, posto do qual jamais deveria ter sido removida.
Naquele tempo, os marinheiros eram, quase todos, ex-escravos ou filhos de escravos. Quando cometiam algum erro, a punição era crudelíssima. Certo dia, um deles foi castigado com nada menos do que 250 chicotadas, quando o habitual eram 25. O pobre desmaiou de tanto apanhar. Foi aí que o marinheiro João Cândido, gaúcho de Encruzilhada do Sul, decidiu liderar a revolta que abalou o governo de outro gaúcho, o presidente Hermes da Fonseca.
João Bosco e Aldir Blanc fizeram uma música em homenagem à chamada Revolta da Chibata e a João Cândido, o Almirante Negro. É O Mestre-Sala dos Mares, que, nos anos 1970, teve a letra modificada pela censura do governo militar. A letra original contava, acerca das chibatadas sofridas pelos marinheiros:
Rubras cascatas jorravam das costas
dos negros pelas pontas das chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
Que a exemplo do marinheiro gritava – não!
As duas revoltas, a dos russos e a dos brasileiros, terminaram em tragédia para os amotinados. Ambos os governos cederam para alcançar a paz, ofereceram perdão e traíram os marinheiros. Os russos foram mortos às centenas. Os brasileiros foram presos. Dezoito dos líderes da rebelião viram-se metidos em uma cela minúscula do presídio da Ilha das Cobras. Dezesseis morreram asfixiados. Um dos sobreviventes foi João Cândido, que contou assim o que aconteceu na cadeia:
“A prisão era pequena e as paredes estavam pichadas. A gente sentia um calor de rachar. O ar, abafado. A impressão era de que estávamos sendo cozinhados. Alguns, corroídos pela sede, bebiam a própria urina. Fazíamos as necessidades num barril que, de tão cheio, rolou e inundou um canto da prisão. A pretexto de desinfetar o cubículo, jogaram água com bastante cal. Havia um declive e o líquido, no fundo da masmorra, se evaporou, ficando a cal. A princípio ficamos quietos para não provocar poeira. Mas o calor, ao cair das dez horas, era sufocante. Gritamos. Nossas súplicas foram abafadas pelo rufar dos tambores. Tentamos arrebentar a grade. O esforço foi gigantesco. Nuvens de cal se desprendiam do chão e invadiam os nossos pulmões, sufocando-nos. A escuridão, tremenda. A única luz era um candeeiro a querosene. Os gemidos foram diminuindo, até que caiu o silêncio dentro daquele inferno. Quando abriram a porta já tinha gente podre”.
Ao ser retirado da masmorra, o Almirante Negro, considerado louco, foi internado à força em um hospício.
Tudo isso acontecendo e ainda não consegui chegar ao bar. Sim, quero chegar ao bar! Chego na próxima coluna.